Soni Esteves
Estou em casa, como sinto que devo estar, porque ir para a rua sem porquê é, por estes tempos, um ato de egoísmo que se paga caro. Passei por duas semanas de interrupção letiva que não previ, das quais vou sentir falta daqui a uns tempos, quando me pesar o fardo de ser professora à distância, porque isso será inevitável.
Quando escolhemos o ensino, e durante os anos em que nos preparamos, no meio de tanta pedagogia, psicologia, sociologia, história e filosofia da educação… ninguém nos preparou para sermos professores à distância. E não falo da incapacidade ou impreparação a nível tecnológico para aceder a novos recursos educativos digitais, plataformas de ensino e aprendizagem online, porque essas nós ultrapassamos. Imaginam a quantas sessões formativas os professores assistiram durante este último ano? Quantas assistiram ao longo da vida? Os professores podem ser uma classe envelhecida, mas desenganem-se aqueles que os julgam uma classe de velhos, porque eles sabem reinventar-se, a cada dia.
Porém, a sociedade espera sempre mais dos professores, esses seres imperfeitos, incapazes de serem super-homens ou supermulheres. É aí que se coloca a questão: o que será um professor perfeito? Aquele que não falta? O mais competente na sua área de formação? O mais culto? O mais experiente? O que melhor comunica? O que ensina a pensar? O mais próximo?
Recordo que um dia, um certo 5 de outubro, dia em que, mundialmente, se convencionou chamar “do professor”, alguém colocou na minha escola um painel onde éramos convidados a responder à pergunta “O que é ser professor?”. Fiquei parada diante daquela questão, a sentir um embaraço maior do que eu por não me ocorrer nada de minimamente inteligente. Escrevi alguma coisa que não recordo, decerto pouco interessante, mas lembro-me de no dia seguinte me ter acercado do painel e ter lido cada uma das asserções ali apresentadas por colegas muito mais inspirados e inspiradas do que eu. E sim, ser professor era tudo aquilo! Mas, como sê-lo? A quantos daqueles requisitos respondia eu? Que professora seria eu quando, ainda antes dos dezoito anos, enfrentei pela primeira vez, uma turma?
Hoje penso que, naquela época, não passava de uma criança a tentar ensinar outras crianças. Anos depois, já mais crescida e com a escola da vida a ensinar-me outras coisas, como ser mãe, por exemplo, fui surpreendida por uma frase da minha filha, que respondia a uma pergunta da educadora: “a minha mãe é grande, mas também é um bocado pequena porque ainda anda na escola”. Era assim que ela me via, entendia que a escola fazia parte da minha vida, como professora, mas também como aprendente. Quem sabe ainda hoje me veja assim, quando estudamos as duas, quando ela me ensina coisas e quando as aprende comigo, na escola que é também a nossa casa.
Na verdade, há sempre um espaço da nossa casa que é extensão da escola, tal como existem espaços da escola onde nos sentimos em casa. Os meus são a sala de aula, a biblioteca e o clube de teatro.
E depois vem a pandemia, e as casas dos professores convertem-se, de facto, nos novos espaços de aula e de aprendizagem, onde os horários são essa coisa indefinida em que se encaixam o tempo da família e do lazer e as tarefas domésticas, por entre as escolares, com estas últimas a ganharem espaço, sucessivamente.
E não vale a pena acrescentar complicação ao que já é complicado. A quem importa que eu use o meu computador, gaste a minha eletricidade e a minha internet? Tudo isso é tão pequeno perante os números que nos mandaram confinar.
Imagino que a minha casa vá continuar a confundir-se com a escola até final de março, isto porque acalento a esperança de lá voltar em abril. Tenho pena de não ir a tempo de passar pelo Bom Jesus para ver as camélias floridas, esse espetáculo maravilhoso que gosto de admirar. Mas, se no meio de tanta perda, eu não perder as minhas pessoas, serei feliz.