Cultura, Literatura e Filosofia

OUVIR. O SILÊNCIO.

Anabela Borges

Há um uivar persistente de cão que afecta gravemente o silêncio. É um o uivar lento e doloroso, altamente assoberbado de fantasmas e de futuro. O silêncio seria quase puro. Mas assim não é.

Cada um tem os seus segredos. As pessoas passam por certas coisas na vida que ninguém pode saber; ninguém pode fazer parte das coisas que são do mais interior e do mais resguardado de cada um. Porque são demasiado íntimas ou demasiado incómodas para contar. Sozinhas, as pessoas carregam o fardo como atravessando um deserto longo e sombrio, cheias de uma sede que não tem fim; uma sede de água límpida, uma sede de desfecho, de conclusão, de termo certo. Porque esses acontecimentos ocultos, carregados de silêncios, cada um têm de os transportar a sós. Ninguém pode fazer parte disso. Assim é sempre uma ilusão pensarmos que sabemos tudo sobre alguém. Segredos. Toda a gente os tem. E os mais ensombrados não são para partilhar. Esses vão ficar guardados no interior da arca funda e semi-obscura que conseguimos ser. E, cedo ou tarde, chega um momento em que a vida nos faz encarar esses assuntos até então adormecidos.

É por isso que faz falta sabermo-nos ouvir. O interior. De nós. O mais recôndito. O mais insondável ou assustador. De nós. Faz falta: parar; escutar a mente; a batida misteriosa do coração; o medo; o espírito frágil e complexo que somos-ser. Faz falta: olharmo-nos. Sem medo de darmos de caras connosco. Frente a frente, como num espelho que reflectisse a nossa imagem física e o interior – essa arca de pensamentos e memórias, súbitas alegrias e fantasmas – que carregamos connosco durante a vida inteira, que vamos enchendo e esvaziando, de acordo com o percurso mais ou menos sinuoso que fazemos. Conseguir estar só, ouvir esse silêncio interior, pode ser muito revelador da pessoa que somos e não sabíamos. Pode ser reconfortante. Pode ser avassalador. Pode ser um misto de tudo, um redemoinho de sensações. É uma viagem de auto-conhecimento. Essa é a verdadeira viagem da nossa vida. Porque é importante descobrirmos outros eus de nós. Só assim sabemos lidar com tudo o resto. Com os outros.

Um barco abandonado, sem rumo: é assim que muitas pessoas se sentem. Porque elas não sabem auto-conhecer-se. O medo – medo de ver, medo de ouvir, medo de descobrir – impede-as. E assim buscam constantemente ruido nas suas vidas. Para não terem de se ouvir. Para não terem de se enfrentar.

Confinamento: e um sininho de tilintar tenebroso soa ao ouvido. Desconfinamento: e outro sininho se faz ouvir, soando nos confins insondáveis do tempo. A incerteza é adaga afiada, luzindo nos longes do horizonte. Quem sabe? O que sabe? Para onde vamos?

A Pandemia coloca-nos todos esses desafios. Sabemos lidar com eles?

Eu estou aqui e procuro ouvir todos os silêncios. Há um uivar persistente de cão. E eu estou aqui.

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