Regina Sardoeira
Agora que todos os meios de comunicação social, decerto carenciados de notícias, nos lembram, com intensidade e muitas imagens, o início desta nova situação que vivemos – e chanam-\lhe todos aqueles nomes já tornados comuns – , eu reflicto acerca dela também. Não o faço por questões de efeméride, mas na medida em que, após a surpresa inicial (quem diria que seríamos deste modo condicionados por obra de um vírus no nosso super-avançado seculo XXI?) e a estranheza dos primeiros tempos, o problema persistiu e não mostra sinais de desaparecer.
Desde então para cá, a nossa vida alterou-se.
Por mim, não sou extraordinariamente afectada por esta obrigatoriedade de ficar em casa. Não me sinto muito reprimida no meu quotidiano, já que continuo, quase, a levar a minha vida de sempre. E é neste “quase” , e logo nas pequenas acções que deixei de fazer, por causa das restrições, que descubro, agora, o grande problema.
Em primeiro lugar, não consigo habituar-me à máscara. Parece-me absurdo, irreal, inumano ter que empunhar uma máscara e com ela tapar uma parte considerável do rosto e, do mesmo modo, me parece absurdo, irreal, inumano ver, à minha volta pessoas mascaradas, cuja fisionomia essencial me escapa.
Nunca gostei do Carnaval, nem me lembro de algum dia ter cedido ao disfarce, nessa época do ano em que as máscaras abundam. Mas agora vejo-me participante num carnaval sem fim à vista!
Por outro lado, noto agora a impossibilidade de fazer pequenos gestos, pequeníssimas acções, de cuja importância não suspeitava.
Habitualmente, tomo as refeições em casa e nunca me incomodou essa prática. Mas agora que tomo consciência de que não posso fazê-las de outro modo, vejo que estou sitiada e percebo, ao mesmo tempo, que dantes fazia-o por opção pessoal e que hoje sou obrigada a isso. De facto, se me lembrar, uma certa manhã de tomar o pequeno-almoço fora, reparo que não terei onde ir; e se, por um desejo análogo, quiser ir a uma esplanada tomar um café ou passar umas horas e lanchar naquele sítio especial, imediatamente percebo que estarão fechadas as portas! Um destes dias tive necessidade de um pincel fininho para pintar os detalhes de um quadro que tenho em mãos, assim como de uns tubos de tinta de cores em falta. Não consegui encontrá-los nas lojas abertas e acabei por fazer uma encomenda online. Precisei de um tapete: as lojas onde fui tinham esse e outros artigos barrados com fita vermelha e branca! E assim, sucessivamente.
Dir-me-ão que estas carências não significam nada, porque há pessoas doentes, com fome, desempregadas, sem tecto…e eu sou compelida a concordar. Mas o certo é que, dia após dia, ao esbarrar com obstáculos dantes inexistentes, obstáculos que condicionam a vida na sua base trivial, muito trivial mesmo, sinto um desânimo extraordinário. Percebo que as grandes coisas da vida, a arte, a filosofia, a literatura necessitam de um chão estável para poderem ser levadas a cabo.
O quadro que comecei a pintar está ali, incompleto e até já tenho em casa os materiais que me faltavam; os projectos de escrita que idealizei ( e até dispus o meu escritório numa nova ordem) não avançam, porque as palavras me tardam…e assim por diante!
Se ligo a televisão para obter notícias, fico chocada porque, do princípio ao fim, o mote é sempre o mesmo! E escassamente quero saber os números dos mortos, dos doentes, dos infectados, o avanço ou atraso nas vacinações e as opiniões dos”especialistas”.
Apetece-me dizer às pessoas que estamos todos a ser vítimas de múltiplas ciladas, que os governantes ( os de cá e todos os outros) não sabem nada de nada acerca do vírus que inundou o mundo, vindo ninguém sabe de onde ( ou, se alguém sabe, permanece no silêncio), que as medidas e as regras, o confinamento e as restrições não passam de panaceias e embustes! Apetece-me dizer às pessoas que saiam de casa, sem máscaras, que enfrentem o mundo com a cara descoberta, que desobedeçam e abram tudo o que está encerrado, que invadam parques, jardins, praias, esplanadas, a ver o que acontece depois!
Há um ano que vivemos uma existência de tal modo irreal que a normalidade, o quotidiano, tudo o que servia de suporte à vida de todos, por muito mesquinha e insignificante que fosse, parece hoje gigantesco e sublime! Os pormenores, as pequenas rotinazinhas ( um café numa esplanada, uma ida ao cabeleireiro, um pincel de detalhe, um tapete) tornaram-se grandes metas a atingir, grandes objectivos. E é isto que acima de tudo me parece perigoso.
As pessoas habituaram-se ao confinamento, crêem nele como sendo a condição da sua saúde e aderem ao trabalho online, seja vender roupa ou dar aulas às crianças e jovens. Habituaram-se a cumprimentar os amigos com um aceno prudente, à distância, ou com um toque ridículo de cotovelos. Mandam vir refeições de fora e fingem que estão no restaurante, convocam reuniões e falam com pequenas janelas num ecrã, tornadas, elas também, numa janela. E adquirem máscaras pretensiosas que combinam com a roupa, tapando o rosto, sim, mas com muito estilo.
Parece-me que, mais letal que o próprio vírus será, a médio prazo, esta nova figura do humano: o vírus será afastado ou minimizada a sua acção ou aprenderemos a lidar com ele, como tem acontecido noutras situações. Mas, até esse dia chegar, que novas roupagens irá vestir a humanidade?
Por outro lado, eu bem vejo que esta espécie a que pertenço está corrompida a muitos níveis, e que, por essa razão, decerto um renascimento seria desejável. Mas este novo paradigma humano será preferível ao outro? Poderá nascer desta humanidade, anquilosada pelas restrições e pelo medo, uma nova era de características superiores? E as nossas crianças, isoladas dos seus pares, de máscara aprestada, reféns do ecrã, poderão crescer para esse novo mundo, que talvez seja necessário?
Escrevi, decerto, um texto contraditório: mas é contraditório o tempo que vivemos e de pouco adianta disfarçá-lo com palavras convenientes.