Regina Sardoeira
Os homens, no seu todo, e logo a humanidade, conquistaram muito, ao longo dos séculos, tanto que sentiram, a certa altura, que a Terra lhes pertencia, exclusivamente. Tornaram-se, por isso, uma espécie de tiranos, opondo-se aos restantes seres, dominando-os, escravizando-os, invadindo os seus territórios, numa ânsia desmedida de sobreposição absoluta. Foram esquecendo verdades fundamentais, ludibriando a sua própria necessidade, verdades directamente ligadas ao solo que desbravavam e transformavam noutra realidade, às águas de rios e mares, tornadas estradas ou locais de usufruto e destituídas da sua real autenticidade, aos animais que ligaram a si para que os servissem de todas as maneiras possíveis, às plantas cujo crescimento controlaram. Ao mesmo tempo, criaram subespécies entre si, estabeleceram castas e hierarquias, dominantes e dominados, senhores e escravos, proprietários e servos, e a luta de uns contra os outros foi sendo a dominante da trajectória dos humanos na Terra. A guerra tornou-se a alavanca da história dos homens, basta analisar cada uma delas, na sua escalada de terror e morte, para termos a percepção exacta do que move os homens, divididos em países e potências, onde o lucro, a ganância e o poder se substituíram à coabitação pacífica, ao usufruto partilhado.
Li há dias uma frase algures cujo sentido ficou a repercutir em mim. Alguém dizia: “Aqueles que têm de mais, enquanto outros passam fome, deviam ser drasticamente penalizados, deviam ser punidos ou presos por isso.”
Pareceu-me tão terrivelmente simples! De facto, é um crime alguns de nós, homens, desperdiçarmos, esbanjarmos, adquirirmos continuamente mais bens e riqueza e por causa disso sermos guindados á categoria de dirigentes do mundo (e esta primeira pessoa do plural nada tem a ver comigo, como é óbvio) e outros de nós, homens, permaneceremos exangues nas franjas da vida, famintos e em desespero. Não faz sentido que uma tal dicotomia se apresente ainda e resuma o modo de ser do humano, de tal modo estabelecido pelos séculos fora, que nem uns nem outros se lembram de pensar no assunto, discuti-lo e mudar o sentido destes dois pólos antagónicos . E no entanto seria fácil distribuir os benefícios, retirando o excesso de um lado e prenchendo a carência no outro. Mas agora reflicto e noto que o termo “fácil” que utilizei, por me parecer uma questão de simples humanidade, não é, de todo, adequado. Não, não seria fácil, antes daria azo a novas lutas pela propriedade do já adquirido, pela manutenção do excesso e dos seus corolários nas esferas do poder. E contudo, o excedente, o não utilizado, aquilo que sobra, diariamente, ou numa certa escala do tempo, poderá ser a condição de normalidade na vida dos que carecem!
Sendo deste modo clara e lógica a resolução do problema humano, na sua base, por que razão nunca, na história, se procedeu à passagem do plano lógico para o plano prático? Por que razão persiste a humanidade neste erro atroz e nesta cegueira absoluta?
Já sabemos todos a razão. Como sabemos que o homem não é, entre todos os seres da natureza, o seu dono e senhor, nem nunca teve o direito de defraudar e espoliar os recursos naturais a seu favor (e depois, mesmo conta si, no paradoxo do abuso).
E é por isso, decerto, que, num ápice, fomos todos confrontados, enquanto humanidade, com uma outra espécie de guerra, com várias frentes de luta, uma guerra sem bombas ou espadas ou canhões, uma guerra para a qual não houve exercícios de combate ou preparação e nos apanhou de surpresa. Nem o inimigo comum conseguimos ver realmente, nem os estrategas sabem com o que estão a lidar e cometem erro atrás de erro, nem o indivíduo, na sua especificidade, compreende, ao certo, o que há-de fazer ou para onde deve ir. É, pois, nesta zona obscura, microscópica, latente, subreptícia que hoje se trava a mais singular de todas as guerras. A fragilidade universal do homem foi posta a nu e não atingiu ou respeitou castas, hierarquias ou classes porque todos estão exatamente nas mesmas condições. Por outro lado, os animais e as plantas e os rios e os mares e tudo o que é, ainda, a natureza estão fora dessa guerra que tem os humanos exclusivamente como alvo.
Por estas razões, este é o momento certo para mudar, se ainda for possível a ordem das coisas no que à humanidade diz respeito.