Regina Sardoeira
Há muitas camadas na estrutura do ser humano, tantas, que é impossível, na prática e mesmo na teoria, designá-las e apreendê-las por inteiro.
Por mais que tentemos, não somos capazes de aceder à totalidade da nossa imagem corpórea. Vemos no espelho a parte da frente, escapa- nos o que está atrás. Mas, se acaso quisermos , com outro espelho, ver o lado posterior, deixaremos de ver o outro lado. O mesmo se passará relativamente às laterais do corpo: olhar para uma, exclui a outra e vice-versa. Se quisermos juntar tudo e obter a nossa figura global, nunca seremos capazes de o fazer. O mesmo é válido relativamente à nossa visão dos outros: vemos a frente, e imaginamos a parte de trás, vemos a parte de trás e imaginamos ou recordamos (operação mental que contém a imaginação) a parte frontal. Não poderemos, pois, dizer que nos conhecemos pois, mesmo com máquinas de filmar ou de fotografar dispostas à nossa volta, de cada vez conseguiríamos ver apenas uma parte.
Certamente, esta incapacidade incomoda- nos minimamente; e levamos a vida convictos da representação, em nós, da nossa própria figura, assim como da representação de quem nos rodeia. E no entanto esta impossibilidade nossa de nos captarmos, em simultâneo, em toda a nossa estrutura exterior, feita de muitos ângulos, perspectivas, volumes, é uma verdadeira deficiência dos nossos sentidos.
Caminhando para o interior de nós, a incapacidade de ver o todo multiplica-se. Nunca tivemos a percepção, ao vivo, do nosso coração a pulsar, ou do sangue a ser bombeado, ou do estômago a digerir os alimentos e ainda menos pudemos observar a dinâmica do organismo na sua incessante movimentação. O cérebro, com os milhares de neurónios especializados, as sinapses e os movimentos instantâneos dos nervos que trazem as impressões dos músculos, as conduzem ao cérebro e, de novo, de volta ao músculo para que sintamos a impressão produzida, as hormonas e os neurotransmissores em articulação para nos fazerem sentir a fone, a sede, o frio são mistérios profundos que a ciência vai, penosamente, desvendando. Mesmo tudo o que acabo de escrever me provoca dúvidas, pois trata-se de conhecimento adquirido e não de efectiva observação.
Em geral, vivemos bem, deste modo, e não nos passa pela cabeça querer ver o nosso interior de forma directa e ao vivo. Mas o certo é que não nos conhecemos, também a esse nível.
Temos ainda outras dimensões. O espírito ou a alma que dizemos possuir e que invocamos como sendo a nossa essência, sem contudo sermos capazes de dizer o que é, objectivamente, ou onde se situa, em nós. A mente, esses prodígio, capaz de estabelecer conexões rapidissinas, passando de um tópico para outro, vertiginosamente, o pensamento que está sempre presente, mesmo que dele não tenhamos uma percepção objectiva, a consciência cuja verdade nenhum cientista conseguiu descobrir por inteiro e que supomos ser a marca da nossa vigília… mas depois o subconsciente e o inconsciente, zonas obscuras que, alegadamente, comandam subrepticiamente as nossas acções…quem tem, de si, ou de um outro, uma noção do que seja toda esta complexidade?
Adormecer, por exemplo, é um verdadeiro mistério. Ainda que esteja explicado, cientificamente, o processo que nos conduz, diariamente, ao sono, como reter aquele momento exacto em que a nossa consciência diminui e as funções corporais se detêm, para podermos descansar? Quem pode dormir e, em simultâneo, ver-se a dormir?
Não tenho a certeza se consegui ilustrar, de um modo simples, a real impossibilidade de termos acesso ao nosso ser, por inteiro, ao dos outros e ainda a tudo o que existe à nossa volta e escassamente conseguimos ver. Caminhamos por aí, cheios de arrogância e convicção, certos do que somos, de onde vimos e para onde queremos ir : e, contudo, não sabemos de nós senão um pálido esboço!
Escrevo tudo isto, hoje, porque de manhã pensei, não sei porquê, em Descartes, o célebre matemático e filósofo do século XVII. Julgando conhecer o seu pensamento, que absorvi de múltiplos livros, percebi, de repente, que nada sei do indivíduo concreto que ele foi! E então tive a noção do que ele poderá ter sentido ao confrontar-se, subitamente, com a única verdade certa do seu pensamento filosófico: ” Penso, logo existo.”. Entendi que esta consciência árida que nos dá, diariamente, a certeza de existirmos, se reduz a esta fórmula, que nada mais sabemos de nós ou do mundo, que não passamos de um filtro por onde se vão escoando percepções e imagens acerca das quais nada poderemos saber ou vir a saber. Percebi que a tentação de recorrer a Deus para preencher uma tão extrema solidão tinha que ocorrer-lhe pois saber que pensa porque existe ou que existe porque pensa é um frágil conhecimento.
Especulo sobre Descartes, esse homem concreto que viveu há quatro séculos, porque, de facto, não posso recuperá-lo materialmente e observá-lo, enquanto pessoa. De igual modo, porém, sei muito pouco acerca de mim e do resto do mundo, limitada que estou pela minha capacidade de observar, de reter, de abarcar o todo na sua plenitude.
E é esta, afinal, a súmula da condição humana.