Soni Esteves
Não costumo planear os temas das minhas crónicas, não tenho como princípio escrever sobre assuntos da atualidade. Pode acontecer, mas não é objetivo meu. Os meus temas nascem de reflexões que vou fazendo no dia a dia. Podem surgir de um livro, uma notícia, uma palavra, uma imagem, uma pessoa… Acontece, por vezes, que as ideias surgem breves, espontâneas, e logo voam e dispersam, sem me darem tempo de lhes dar forma. Ficam a pairar à minha frente, a dançar com as coisas sérias do meu dia e, por fim, vão para outro lugar.
Mas, hoje, sentindo próxima a data de cumprir com o envio da minha crónica mensal, percebi que, nos últimos dias, nenhum assunto interessante me ocorrera a ponto de me convocar a sobre ele traçar algumas linhas. Pensei então em todas aquelas ideias que me visitaram em plena pandemia, desde o primeiro confinamento, muitas das quais até hoje perduram adormecidas, sem forma nem consequência. Convoco-as, pois, quem sabe eu possa tecer algumas considerações sobre uma delas, alguma que esteja por aqui à espera que lhe dê uma segunda oportunidade.
E é a propósito dessa ideia de segunda oportunidade que me lembro de um livro de Jean Paul Sartre, Os dados estão lançados. Li-o pela primeira vez há muitos anos, mas precisamente durante o primeiro confinamento, procurei-o na zona dos livros esquecidos (também tenho disso) e reli-o. É um pequeno romance que, mesmo em edição de bolso, não passa das 50 páginas. Trata-se de uma história simples, apesar de intensa, que se inicia com a narração das derradeiras vivências de dois estranhos — um rapaz da classe operária e de uma rapariga da alta burguesia —, até ao momento em que enfrentam a morte. O curioso é que, tal como Gil Vicente coloca os mortais, logo após a morte, perante um rio que forçosamente terão que atravessar; Sartre coloca-os no interior de uma casa, onde uma velha senhora os convida a abrir uma porta. A porta abre para uma rua da mesma localidade onde ocorreu o óbito e, curiosidade das curiosidades, os mortos passam a viver em perfeita liberdade, entre os vivos. Em tranquilo convívio com outros mortos de várias gerações, todos vagueiam pelo mesmo espaço. O inquietante é pensar que os mortos conseguem ver e ouvir tudo o que se passa com os vivos, sem que estes o percebam, obviamente. Ora, é neste cenário que as duas personagens, que acabam de entrar nesse mundo dos mortos, se conhecem e se aproximam, depois de terem vivido uma vida quase ao lado um do outro, embora distantes pela condição. E é na liberdade que a morte lhes confere que percebem os preconceitos sociais, morais e sexuais que lhes regularam toda a existência.
Não vou desvendar aqui os porquês, não vá alguém querer lê-lo, mas aos dois jovens é dada uma nova oportunidade de regresso à vida. Também não vou contar se a aproveitam ou não, até porque o próprio título pode fazer antever um desfecho. Contudo, não posso deixar de dizer que este pequeno grande livro nos conduz a um conjunto de reflexões interessantes, como a constatação de quão irónica pode ser a nossa condição humana, o quanto têm de frágil e de efêmero os títulos, o poder… e como, mesmo sabendo disso, não prescindimos deles. Por outro lado, será que somos verdadeiramente livres e capazes de escolher ou decidir a nossa vida, de acordo com a liberdade individual, ou se será o destino mais forte que o livre arbítrio, capaz de nos encaminhar numa direção determinada? Claro que não podemos dizer que estas são novas questões. Há séculos que nos debatemos com elas, no entanto, é na perspetiva inesperada, irónica e genial, de Sartre, que reside a originalidade desta obra.
Se não leram, aqui fica a dica, não esperem respostas, mas estejam abertos a alguma inquietação e muitas questões.