Regina Sardoeira
Abre-se a Primavera pelos interstícios nublados e chuvosos de um Abril exactamente igual a si próprio. Cansados da época sombria de frio e desnudamento da natureza hibernante, desejávamos o sol esplendoroso de manhã à noite. E lidamos mal com o contratempo das nuvens e da chuva.
Somos estes seres inconformados, subversivos em relação ao fluir natural da vida, ávidos de submeter ao poder da nossa vontade tudo o que nos rodeia. E no entanto, essa submissão não é mais do que um subterfúgio criado pela nossa arrogância de seres racionais, predispostas ao domínio.
Contudo, a racionalidade humana, sendo a diferença específica que nos eleva em relação aos restantes animais – a definição de Aristóteles assim o propõe – não tem semelhante poder. Na base, somos animais; e logo a necessidade de sobreviver, no contexto de um organismo idêntico ao dos restantes seres, sobrepõe-se largamente aos impulsos de uma racionalidade cujo poder não é tanto quanto é comum considerarmos. De facto, o que significa ser racional, a não ser possuir a capacidade de estabelecer relações lógicas entre acontecimentos, imagens, pensamentos? E o que garante que essas relações obtidas pelo dinamismo específico construído pela razão tenham valor intrínseco?
Vejamos o célebre silogismo aristotélico:
Todos os homens são mortais
Sócrates é homem
Sócrates é mortal.
Estamos perante um raciocínio dedutivo, segundo o qual sendo dadas duas premissas delas resulta, necessariamente, uma conclusão.
Prestemos atenção ao “necessariamente”. Que vantagem encontramos neste trânsito de premissas se tudo ficou dito, de uma vez por todas, na primeira asserção? E assim sendo, a segunda e a terceira afirmações revelam, “necessariamente”, a sua inutilidade.
A racionalidade humana é um jogo, às vezes intrincado, ocasionalmente tortuoso, a maior parte do tempo fútil, usado para ocupar o tempo em inúteis trivialidades. A lógica, esse exercício de habilidade, pelo qual exercitamos sofismas, falácias, vulgo, mentiras, é o patamar supremo da nossa alegada superioridade face aos restantes seres da natureza. E, por fim, de todos eles – pois o ser humano é igualmente da natureza – somos os menos dotados quanto ao uso da razão. Senão, pensemos.
Um animal selvagem, digamos, um leopardo, conhece, em absoluto, as suas necessidades, tem a noção certeira do seu poder, escolhe o tempo certo para caçar, comer, encontrar parceira, acasalar e por aí adiante. Ele engendra o esquema da sua vida, escolhe estratégias facilitadoras das suas acções, no que à sobrevivência diz respeito, preserva o habitat, constrói família, cria os seus abrigos, consegue, pois, articular as suas capacidades no bom sentido.
O homem, pode fazer tudo isso também – mas desvia-se. Por norma, tais desvios, designados como actos de génio, descobertas científicas, fenómenos artísticos, especulações metafísicas de pouco valem, desenvolvem-se numa escala circular, reproduzem constantemente o passado. E o mundo, este nosso belo planeta, próprio para albergar, harmoniosamente, todas as espécies e também o homem, enquanto espécie, paulatinamente, foi ficando gasto, corroído, arquejante por força da racionalidade de um dos seus seres e da criatividade e do génio!
Será que valeu a pena? Não! Um furacão, um terramoto, uma pandemia arrasam a obra humana, tão estupidamente racional, reduzindo tudo a ruínas e pó.
O que permanece, afinal, é esta Primavera feita do perpétuo renascimento das folhas verdes em apoteótica oferenda, do zumbir dos insectos sedentos do pólen, do leopardo erguido em pose dominante , nenhum deles carente da lógica ridícula dos homens.