Mateus Oliveira
Por estes dias, dei por mim – mais uma vez – a pensar sobre a estranha (e facílima) capacidade que o aproximar de um ato eleitoral tem para toldar o discernimento de quem, consciente ou inconscientemente, abdica de pensar por si próprio. O mote para esta reflexão: ruas em calçada ou alcatrão?
É obviamente uma questão que merece uma reflexão honesta e eu próprio, enquanto arquiteto, tenho a obrigatoriedade de ir mais além na análise ao tema e não dar uma resposta imediata, só “porque sim”. Do ponto de vista meramente técnico, a resposta é relativamente simples pela análise às vantagens e desvantagens de cada um relativamente ao outro. O alcatrão, ou pavimento betuminoso, é indicado para avenidas, rodovias e ruas em cujo tráfego de automóveis se quer a maior velocidade e com trânsito intenso, uma vez que proporciona maior conforto e fluidez de tráfego, e onde os peões são salvaguardados por passeios generosos. De fácil e rápida execução, tem as desvantagens de ser prejudicial ao ambiente e à saúde; de aquecer muito e aumentar a temperatura ambiente nas zonas onde é aplicado; ter baixa durabilidade e exigir maior manutenção; e o uso de recursos não renováveis. Por seu lado, a calçada é aplicada quando há vontade de reduzir a velocidade de circulação de automóveis. Isso é particularmente necessário em ruas residenciais compostas por habitação ‘solta’, a fim de gerar maior tranquilidade e segurança a peões e moradores, até porque – frequentemente – são zonas sem passeios.
No entanto, não é na dimensão técnica da questão que me quero focar. Por estes dias, no contrarrelógio que o aproximar das eleições exige, percebemos que o alcatrão surge como forma fácil de “fazer obra” e é usado de forma avulsa para maquilhar problemas estruturais. Sobre o pretexto de resolver os problemas dos pavimentos em calçada (inerentes à má execução dos trabalhos de infraestruturação das ruas, com consequentes abatimentos dos pavimentos), aplicam-se “casquinhas” de alcatrão sobre essas mesmas calçadas (que deviam ser devidamente reparadas), descaracterizando completamente o território e subvertendo por completo a sua identidade. E é aqui que quero chegar, à identidade local.
O vale do Tâmega é uma zona de pedras e pedreiros. Faz parte de nós, do que somos, da nossa essência. Sou, orgulhosamente, neto de pedreiros e tenho muitos – e bons – amigos e conterrâneos “da pedra”. Cresci a perceber que nunca lhes foi dado o reconhecimento devido. Nunca fomos capazes de perceber o que carrega cada cubo de uma qualquer calçada por onde passamos. O suor e muitas vezes o sangue, mas também os sorrisos, a camaradagem e as tradições (do – proibido – quartilho de vinho aos códigos orais, como a lhotra ou o galramento). Tem uma dimensão tão agreste quão romântica, teatral até, que o asfalto não tem. E que a mim me fascina. Muito.
Curiosamente, num momento em que localmente parecemos desdenhar a calçada, o resto do mundo olha para ela e para os nossos calceteiros e pedreiros com deslumbramento (veja-se, por exemplo, o memorial de homenagem feito a John Lennon no Central Park, em Nova Iorque, em calçada portuguesa). Teremos em breve – acredito – a calçada portuguesa como Património Cultural Imaterial da Humanidade, e nessa altura não faltará quem apareça a vangloriar-se por isso.
Hoje, num momento que tem tudo para ser de precipitações e de tomadas de decisões atabalhoadas, peço à generalidade dos decisores políticos que não nos atirem alcatrão para os olhos. Peço-lhes, encarecidamente, que olhem para os seus territórios com a honestidade intelectual que a identidade local merece e que salvaguardem características que nos tornam únicos. Somos da pedra.