Regina Sardoeira
Confesso que não compreendo nenhuma guerra. Podem desdobrar perante mim múltiplas causas (elas estudam-se nas escolas), dizer que são justas ou santas, demonstrar a sua inevitabilidade, neste ou naquele contexto, falar de heroísmo e de vitórias….continuo sem compreender.
Há algum tempo, li a biografia de D. Afonso Henriques, o fundador de Portugal. Admirei-lhe a coragem, a pertinácia, os feitos. Mas, no cômputo final, ao revisitar o livro, na memória, o que me ficou foi a imagem de uma personagem manipuladora, desonesta, cruel, um honem sanguinário movido por uma ambição sem limites. Ele fundou Portugal, é certo; e, para consegui-lo, naquele tempo, precisou de usar as armas contra irmãos (os castelhanos) e contra os mouros ( os habitantes de vastas regiões do que é hoje Portugal). Precisou de usar a astúcia, o logro ( aquilo a que chamamos diplomacia) para iludir uns e atacar com segurança os outros. Temos, pois, um país alicerçado em banhos de sangue, carnificina e mentira.
Esta situação é comum a todos os povos, desde a antiguidade. E os heróis erguidos em estátuas, celebrados em obras de arte, feitos figuras tutelares da humanidade não passam, afinal, de criminosos.
Decerto nos primórdios, os homens eram selvagens, predadores, propensos, portanto, à luta e ao conflito. Defendiam-se, lutando, e inventaram as armas com que prolongavam a própria força. O tempo, porém, criou a civilização, a cultura, definiu territórios e foi criando muitos consensos, até chegarmos às sociedades globais, onde o trânsito se vai fazendo livremente, com as fronteiras diluídas. A sociedade dos homens baseia-se na convivência pacífica entre povos, nas uniões estabelecidas, nos acordos.
E contudo, apesar do progresso e do reconhecimento da inutilidade da guerra e da conquista, apesar de os recursos naturais, se distribuídos, chegarem para todos, o desequilíbrio é patente, os conflitos espreitam; e a guerra, com o seu séquito de destruição e morte, continua a ser o modus vivendi de certas zonas do mundo.
Há pouco vi imagens do conflito violento instalado, de novo, no Médio Oriente. Observei explosões, prédios a ruir, destroços a entulhar espaços que antes eram ruas. Fui revisitar informações sobre a Faixa de Gaza, esse pequeno território
com 41 quilómetros de comprimento e apenas de 6 a 12 quilómetros de largura, com uma área total de 365 quilómetros quadrados. É, literalmente, uma faixa, orlada pelo mar Mediterrâneo, fazendo fronteira com o Egipto e Israel; mas alberga uma população estimada em quase 2 milhões de habitantes, muitos deles refugiados palestinianos. E eu questiono: porquê esta guerra, esta disputa cuja história vem de há longos anos, na qual o povo judeu, tão molestado ao longo dos tempos, ocupa, agora, a posição de atacante e verdugo? Sei perfeitamente que existirão razões, motivos, causas apresentadas e defendidas por muitos. Mas a questão fundamental persiste: porquê? No mundo humano, que sentido faz esta luta territorial, esta chacina?
Mais tarde, olhei para o ecrã da televisão e li uma legenda: “Rapaz pacato mata o pai à facada depois de refeição em família”.
Tudo, nesta legenda, que servia de fundo a uma análise policial (que não ouvi), me deixou perplexa. O rapaz é pacato e contudo esfaqueia o pai até às morte. Que sentido faz garantir a sua pacatez quando foi capaz de um tão violento homicídio?
O que significa ser pacato e que sentido faz juntar esta adjectivação à notícia do crime?
“Pacato” é o mesmo que tranquilo, sossegado, sereno. Que índice de serenidade poderá associar-se ao acto brutal de agredir o pai com violentas facadas? Se era sereno, na aparência, tinha, sem dúvida, um enorme acervo de violência interior contida que, no decurso ou no final da refeição familiar, virou contra o próprio pai. Esta violência não manifesta revela o poder primitivo, oculto na esfera recôndita do homem pacato, prestes a inflamar-se e a sacrificar o próprio pai no termo da refeição familiar. Merecia um estudo aprofundado, para além da reportagem/debate televisivo, a história íntima deste homem pacato, bruscamente acedendo à violência.
Afinal, o homem, da humanidade, permanece violento e bárbaro, apesar da civilização. Basta observar um pouco, riscar a crosta da aparência, levantar o véu da pacatez, ler a história de todos os ângulos, perceber como os oprimidos se transformam em opressores. Tudo o resto é farsa e ludíbrio.