“A Primavera bulia em toda a parte, no ar lá em cima, por baixo da terra e em redor, impregnando também a escura e humilde casinha do Toupeira com aquele seu espírito de sagrada e ansiosa inquietação.”, In “O Vento nos Salgueiros”, Kenneth Grahame (1908)
Anabela Borges
Há um arrepio de vozes que assalta o ar fresco da manhã. Maio leva o tempo adiantado no calendário, mas os tempos não estão para brincadeiras, e nem o tempo está.
Há um vazio que nenhuma voz pode preencher e há um vento frio que levanta tudo à sua passagem, dá desconforto e desgosto.
É domingo. Misturam-se vozes e sons que nem sempre acontecem nos outros dias da semana. São vozes de quem se pode demorar um pouco mais ao rés da casa e quer entreter-se em afazeres diferentes, com arranjos no jardim ou na cerca ou no portão. O vento vem e transporta essas vozes e esses sons, fazendo-os um bolo de ruído difícil de decifrar. Apenas diferente dos outros dias.
E, no entanto, um rame-rame já habituado, em repetição há mais de um ano: um rame-rame frio, desconjuntado, tristonho, assustadiço… que é viver em tempos de pandemia.
Quando era criança, adorava assistir aos episódios de “O Vento nos Salgueiros”, em desenhos animados. Aquele mundo que dava uma vida especial aos bichos, ao Texugo, ao Rato D’ Água, ao Sapo, ao Sr. Toupeira – vidas que me pareciam tão verdadeiras como a minha própria vida, com propósitos, rotinas, coisas para fazer, objectivos a alcançar –, tudo aquilo era para mim tão real, que me enchia de atenção e de fascínio. Ver “O Vento nos Salgueiros”, ouvir tudo com atenção, deixar-me entrar naquele mundo, entrar dentro dos troncos das árvores, apreciar as ilustrações – tudo aquilo representava um momento de paragem para mim, pura ficção a fazer parar o meu mundo; o meu mundo deixava de existir para ser só aquele mundo, para ser tudo aquele mundo. Eu não queria que nada no meu mundo interrompesse aqueles momentos, então vivia de forma segura e plena a vida vivida em “O Vento nos Salgueiros”. Só muito mais tarde li o livro, numa bela edição com as ilustrações originais. E ao voltar ao livro, sonho com esse universo tão semelhante ao nosso, que me faz conectar ainda mais com a natureza do mundo, mas também com a natureza das coisas e das pessoas. Um destes dias, vou procurar, na Internet, aqueles episódios em desenhos animados que tantos ensinamentos me deram e tanto me fizeram sonhar. E continuam a fazer! – aquela Primavera ansiada que dava forças ao Sr. Toupeira para sair do seu longo sono de hibernação para a vida lá fora: (con)viver, explorar o mundo, aprender!
Porque hoje é domingo e há esse vento frio que sobe do rio, trespassa os salgueiros e faz-nos estremecer a alma de anseios e de incertezas. Mas faz-me lembrar “O Vento nos Salgueiros”: es.pe.ran.ça.