Regina Sardoeira
Regra geral, porém, o artista quer ter público, quer ser uma voz activa no âmago dos seus contemporâneos, quer marcar uma presença : não cabem nele, apenas, as palavras, os sons, as cores que a imaginação lhe ditou.
Será um eterno desajustado, esse, que quer ser escutado e para quem os ouvidos se mantêm endurecidos? Ou será, simplesmente, uma voz desfasada do seu tempo, póstuma, portanto, como também escreveu Nietzsche, sentindo – se a esbracejar no vazio? Ou decerto – quem sabe? – o autor sabe escolher previamente o seu público, ficando a compreensão da sua obra vedada às massas?
Quando escrevemos e publicamos, é essencial sermos lidos.
É, decerto, enigmática, esta necessidade, intrínseca ao acto de criar e apanágio de qualquer artista, que o impulsiona a dirigir-se ao outro numa enunciação de si, frequentemente camuflada.
Mas se observarmos bem, todo aquele que apresenta a sua obra ao público revela um desejo expresso de o atingir.
Pode consegui-lo de diversas maneiras, nem sempre simpáticas ou agradáveis, eventualmente estranhas ou imprevisíveis, muitas vezes motivadoras ou benéficas…mas o certo é que nenhum escritor, ou músico, ou artista plástico ou seja quem for no campo da criação deseja passar em silêncio pelos seus contemporâneos.
Quando isso acontece, o resultado pode ser catastrófico para quem ocupa o tempo a dar corpo a uma obra e não encontra, depois, aqueles, cujos olhos, ouvidos, mente ou espírito poderiam ser o verdadeiro motivo da sua arte.
Aconteceu com Nietzsche, o célebre filósofo, poeta e músico da segunda metade do século XIX.
Temos hoje muitas obras dele e, desde que obteve ampla adesão por parte de leitores, ávidos de palavras inspiradas, belas, sonoras, capazes de inflamarem e influenciarem, por múltiplos e, às vezes, contraditórios motivos, nunca mais deixou de repercutir. E contudo, Nietzsche, conhecedor do seu génio e da importância inovadora do seu verbo, não teve, em vida , os leitores que almejava.
Soube, um dia, que um homem solitário tinha lido o seu livro “Assim falava Zaratustra” ; não descansou enquanto não descobriu a morada do seu leitor e logo o visitou. Disse, depois, quando regressou , melancólico: ” Estive com um homem bom, os meus livros não foram escritos para ele!”
O que concluímos deste episódio? Nietzsche tinha, em si, uma vocação de salvador e um verbo verrumante com o qual pretendia libertar o homem da mediocridade, da baixeza. Porém, os académicos com os quais partilhou a universidade, nos anos em que ocupou uma cátedra na universidade de Basileia e depois, na amizade com Richard Wagner, entre outros , nunca lhe reconheceram o mérito, sempre mantiveram a distância, remetendo-o para uma zona de solilóquio.
Nietzsche percebeu todos os sinais do seu profundo isolamento: mas nunca soube, de facto, que iria tornar-se um mestre do século que começou quando a sua vida se extinguiu. Nunca teve conhecimento de que modo viria a ser estudado, analisado, incompreendido, feito enigma ou mestre, usurpado e confundido com outrem – mas sempre presente, enquanto alvo de leitura.
“Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar.” Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra
Van Gogh, cuja arte encontra hoje plena adesão , passou a vida a pintar, obsessivamente, uma tela por dia. Fazia-o por necessidade intrínseca e ainda pelo desejo de iluminar os salões de exposição com o vigor das suas pinceladas feitas de rajadas incendiárias. Nunca o conseguiu, jamais lhe deram um lugar nesse território onde os seus congéneres iam ganhando fama . Nunca vendeu uma obra, a não ser ao irmão Theodor que as foi acumulando nos armazéns da galeria a que presidia e de quem dependeu toda a vida para a mais estrita sobrevivência.
Mais tarde, depois de ter deixado a vida, as suas telas fizeram escola e foram e são comercializadas com preços elevadíssimos. Ele conhecia a força do seu génio e são dele estas palavras:
” O trigo será sempre trigo, mesmo que as pessoas da cidade possam confundi-lo com erva.” Carta ao irmão
Há outros exemplos, claro. Artistas que quiseram ser lidos, vistos, escutados e se depararam com o silêncio e a indiferença. Muitos, talvez nem tenham sido ainda descobertos, outros, talvez nunca venham a sê-lo, alguns, vão guardando ciosamente a sua produção não querendo que parta para o mundo dos outros.
Regra geral, porém, o artista quer ter público, quer ser uma voz activa no âmago dos seus contemporâneos, quer marcar uma presença : não cabem nele, apenas, as palavras, os sons, as cores que a imaginação lhe ditou.
Será um eterno desajustado, esse, que quer ser escutado e para quem os ouvidos se mantêm endurecidos? Ou será, simplesmente, uma voz desfasada do seu tempo, póstuma, portanto, como também escreveu Nietzsche sentindo – se a esbracejar no vazio? Ou decerto – quem sabe? – o autor sabe escolher previamente o seu público, ficando a compreensão da sua obra vedada às massas?
“A Propósito da Clareza
Quando se escreve é não somente para ser compreendido, mas também para não o ser. Um livro não fica diminuído pelo facto de um indivíduo qualquer o achar obscuro: esta obscuridade entrava talvez nas intenções do autor, não queria ser compreendido por qualquer bicho careta. Qualquer espírito um pouco distinto, qualquer gosto um pouco elevado escolhe os seus auditores; ao escolhê-los fecha a porta aos outros. As regras delicadas de um estilo nascem todas daí; são feitas para afastar, para manter a distância, para condenar o «acesso» de uma obra; para impedir alguns de compreender, e para abrir o ouvido aos outros, os tímpanos que nos são parentes.”
Friedrich Nietzsche, in “A Gaia Ciência”
Contradições? Paradoxos? Claro. No que diz respeito às interpretação (ou à verdade) nada mais temos do que contradições e paradoxos.