Regina Sardoeira
Há o “fazer” – e depois há o “lazer”. Qual destas condições é mais adequada ao ser humano?
Ao longo dos séculos a humanidade alicerçou-se no “fazer”, escassamente ultrapassando o “homo faber”. Pela acção, o homem edificou um mundo justaposto ao original; e a ânsia construtiva tornou-se de tal modo imperiosa que submergiu a natureza . Foi nascendo uma nova realidade, feita de materias submetidos a múltiplas transformações nas quais já não é discernível a matriz original.
Vejamos exemplos. Falar em “agricultura biológica” parece redundante porque, afinal, uma laranja ou uma batata nascem na terra, tendo em si a estrutura da vida (bios). Qualquer produto vindo da terra será, portanto, biológico; mas, na medida em que o homem se habituou a cultivar produtos para consumo recorrendo a ingredientes químicos, essa laranja e essa batata têm em si novas qualidades que as distinguem das outras designadas como biológicas. Os próprios medicamentos ( e também os químicos usados para incrementar a agricultura) foram fabricados em laboratórios com recurso a substâncias naturais altamente potenciadas ou alteradas.
Em tempos, por uma casualidade, soube que um certo medicamento, receitado como tónico cardíaco e logo para insuficiência do coração, teria poder para intoxicar o doente , caso não fosse devidamente acompanhado pelo médico que prescreveria certas pausas no seu uso. Ouvi dizer que um doente estava “digitalizado” por intoxicação do fármaco e fui investigar essa condição. Descobri que o medicamento continha, como base da sua composição, uma planta, designada cientificamente como “digitalis purpurea ” e ainda “dedaleira”, na acepção popular. É uma planta campestre bem conhecida constituída por uma haste com uma série de corolas, geralmente cor de rosa, em forma de dedal ou campainha dispostas ao longo do caule. Percebi, pois, que essa simpática flor, usada em brincadeiras infantis, nas quais as crianças iam estalando as corolas na testa umas das outras, era, afinal, uma espécie de veneno com poder para intoxicar e matar caso fosse utilizada inadequadamente ou em excesso.
Os químicos, sempre ávidos de analisar tudo quanto existe, descobriram esse poder das flores; a indústria farmacêutica criou o medicamente; os médicos puderam, daí em diante prescrevê-,lo aos doentes com arritmia ou insuficiência cardíaca ( ignoro se foi esta a verdadeira ordem do procedimento, desde a planta até ao médico e talvez a cultura popular tivesse conhecido, primeiro, o poder da digitalis.).
Poderemos inventariar uma multiplicidade numerosa de exemplos. Em todos encontraremos a natureza e os seus recursos aproveitados pelo homem para criar artifícios, muitos deles maléficos ou letais, com os quais se vai entretendo e criando uma civilização.
A civilização, tal como existe, deixa muito pouco lugar à fruição; e os tempos de lazer, esses, cuja importância é de extraordinário relevo, são cada vez mais limitados, reduzidos, circunscritos.
Eis então que o homem, esta espécie erguida em apoteose ao domínio de tudo o que existe, é, por causa da sua insaciável vontade de fabricar, de construir, de sobrepor, um ser no qual o “fazer” se guindou à supremacia. E eis que, nas horas insatisfatórias da necessidade de trabalhar que para si criou, sonha com os espaços livres de fruição onde o lazer poderia acontecer. Mas a sua condição actual de escravo das suas múltiplas necessidades e de redundantes artifícios fez recuar a zona clara, ampla e benéfica da verdadeira natureza e também diminuir o tempo necessário para dela se apropriarem. Com perdas imensas para todas as partes envolvidas.