Elsa Cerqueira
Quando alguém se apresenta, começa por dizer o nome, a idade e a sua profissão. Exemplifico: chamo-me Elsa Cerqueira, tenho 56 anos e sou professora de Filosofia há 21 anos na Escola Secundária de Amarante (ESA). Mas o que diz isto sobre mim?
Não sou apenas um nome, uma idade, uma profissão. É a invisibilidade que corporifica o nome, os saberes e experiências que alicerçam a idade e os projetos, as paixões ou pequenas utopias que animam a profissão-vocação, que desvelam algumas pistas do que Sou. Sempre me interessaram as cumplicidades entre a Filosofia e o Cinema na Educação.

As perguntas filosóficas são potências críticas e criadoras do ser humano. E o que é o Cinema, se não o outro lado do espelho dessa criação? Uma filosofia que interroga as imagens em movimento ou um cinema que (nos) interroga filosoficamente?
Creio que foi em 2012 que criei o clube de Cinema na ESA motivada pela vontade de apresentar outra forma de ver e de pensar o cinema. Uma vez por semana, acolhia os alunos, independentemente de frequentarem o ensino regular ou o ensino profissional, de estarem no 7º ano ou no 12º ano. Esta iniciativa implicou da minha parte a visualização de dezenas e dezenas de filmes, sobretudo de curtas metragens e a criação de guiões de análise fílmico-filosófica, de que amiúde me desviava. Foi entusiasmante, mas começou por ser uma utopia solitária e a educação é uma ação solidária.
Em 2014-15, a escola passou a integrar o Plano Nacional de Cinema, a meu pedido, uma iniciativa do Ministério da Educação e Ciência, da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) que visa desenvolver a literacia fílmica, tendo formado uma equipa com professores de áreas distintas, como Artes Visuais, Inglês, Português, etc. E que belas iniciativas colaborativas, transdisciplinares, dentro e fora da escola, proporcionaram e continuam a proporcionar. Já espreitaram a Exposição “Voando com Regina Pessoa”, patente na associação cultural Gatilho?
Creio que o Cinema é a arte inclusiva por excelência e, por isso, convidei os alunos e professores de educação especial a trabalharem comigo num projeto que continua em movimento e que se designa “o cinema de animação como inclusão”. Fundei, com o Diogo Gonçalves, o Clube de Cinema da Casa da Boavista, Residência Sénior. Primeiro, deslocava-me sozinha, dinamizava uma sessão com um filme. Depois, comecei a levar alguns alunos da ESA. Os filmes “Aniki Bobó”, de Manoel de Oliveira e “Pronto, era assim”, de Joana Nogueira e Patrícia Rodrigues, reenviaram-nos para o exercitar das memórias destes Cineséniores. E a cidadania não deveria consistir nestas partilhas voluntárias e intergeracionais?

Convidei os alunos e professores da Escola Básica de Bela Vista a frequentarem o Clube de Cinema, via Plano Nacional de Cinema, e esta iniciativa confirmou-me a profunda vocação filosófica das crianças.
A filosofia, o cinema e as crianças animaram-me a criar o programa de “Filosofia com Cinema para Crianças” e a apresentá-lo à diretora do agrupamento de escolas de Amarante, Dra. Dina Sanches, que o acolheu entusiasticamente. O programa acompanhou o crescimento dos alunos, atualmente, do 4º A, com as respetivas professoras Arminda Jerónimo, Fátima Ribeiro e Andrea Silva. Fazemos cineviagens cognitivas, afetivas e geográficas.

A turma é uma comunidade de investigação filosófica. Primeiro, os alunos contemplam um filme, uma curta-metragem como “O sapateiro” de Vasco Sá e David Doutel, tentando interpretar, compreender, avaliar, os sons, as cores, os planos, a ação e os argumentos das personagens, criando perguntas e desenvolvendo, colaborativamente, os seus próprios pensamentos. Pensam o filme de dentro para fora.

Depois, fomos conhecer o sapateiro de Sta Luzia, o Sr. Paulo e o seu ajudante, Renato; recolheram os sapatos “velhos” lá de casa, e traçaram a sua biografia. Surgiu a “árvore dos sapatos”, inúmeras histórias e interrogações: “Um sapato é uma pessoa?” “O que é uma pessoa?”, “Por que é que há sapatos diferentes?” O que é a diferença?”. E fomos até à Casa Museu de Vilar em Lousada, onde o Mágico Abi Feijó nos levou até à época do pré-cinema, acompanhados com a menina da História Trágica com Final Feliz de Regina Pessoa. As crianças regressaram ao lado de dentro do cinema de animação, criando com Abi Feijó um pequenino filme com os sapatos, de todas as idades e formas, dos familiares. E paulatinamente, foram desbanalizando os sapatos, quer dizer, tornando-os valiosos.
Educar o olhar para aprender a pensar, a sentir e a imaginar, contribuindo para a melhoria de si e de todos, na escola e fora dela, afigura-se-me como fundamental. É também esta motivação – e privilégio – que subjaz ao facto de ser Representante dos Professores do Ensino Secundário Público no Conselho Municipal de Educação de Amarante.
Mas, se a criança é filósofa, o professor deve ser um eterno aprendiz. O curso de mestrado em Filosofia para Crianças da Universidade dos Açores permite-me contactar e conhecer os melhores especialistas desta área, sendo também investigadora ou colaboradora do Núcleo Interdisciplinar da Criança e do Adolescente (NICA) da referida instituição. Viajar com os mestrados em Filosofia da Educação e em Filosofia Moderna e Contemporânea também faz parte do que fui sendo.
A “Filosofia com Cinema para Crianças” tem granjeado muito interesse fora de Amarante e formei professores em várias cidades (Braga, Maia, Almada, Seixal) e, naturalmente, dos ensinos pré-escolar e do primeiro ciclo em Amarante. Publiquei artigos em revistas universitárias, em livros, o último pela Universidade Federal de Góias no Brasil. Fiz conferências, por exemplo, no XXIX Encuentro de Filosofía para Niños y Niñas de Málaga ou nos Encontros de Cinema de Viana.
Estão sempre a crescer-me utopias. Um dia falarei mais detidamente sobre elas. Por agora, agradeço a todos os alunos, professores, realizadores, festivais de cinema e outros parceiros (Cineclube de Amarante, de que sou vice-presidente, Biblioteca Escolar, Casa Museu de Vilar, Gatilho, Oficina Noctua, Casa de Animação, Associação para a Criação do Museu Eduardo Teixeira Pinto e muitos outros) que tornaram suas, nossas, as pequenas utopias.