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Cultura, Literatura e Filosofia

QUANDO A HUMANIDADE COMEÇAR A VER

Regina Sardoeira
Certas palavras e expressões, antes reservadas a contextos específicos, íntimos ou elevados, são hoje desbaratadas sem qualquer reserva. É comum ouvir ou ler nos múltiplos comentários e textos dispersos pelas redes sociais, nos vídeos em directo ou diferido de propaganda e venda de produtos, palavras e frases como : “Amo este vestido!” ou “Estou apaixonada por estes sapatos!” Por mim, diria, de preferência, “Gosto muito deste vestido!” ou “Estes sapatos agradam-me muito !” e jamais incluiria, na minha apreciação de tais objectos, o amor ou a paixão.
O que significa amar um vestido ou estar apaixonado por uns  sapatos? Vestido e sapatos são objectos de uso e de desgaste consequente, peças que hoje servem e amanhã serão inevitavelmente descartadas. Por mim, jamais amei ou amarei um vestido e tenho a certeza que nenhuns sapatos serão objecto da minha paixão.
O vocabulário comum foi desgastando e tornando irrelevantes certos adjectivos, acoplados até à redundância. “Olhem, diz o vendedor/publicista, esta peça é linda e maravilhosa!”
Linda e maravilhosa, e vemos um produto de uso vulgar, mais ou menos bonito…mas …lindo a maravilhoso?
Lindo poderá ser um pôr do sol, maravilhoso poderá ser um concerto de Chopin; e nem sequer associaríamos os dois adjectivos numa mesma apreciação porque, ao justaporem-se, como que se anulam entre si.
A linguagem comum tornou-se demasiado engalanada, bruscamente redundante, numa tentativa desastrosa de influenciar os compradores. Desastrosa em termos linguísticos, claro, porque do ponto de vista estritamente comercial, certamente funciona ( ou não seria deste modo usado a esmo).
“Amo este vestido, é lindo e maravilhoso!” E exibem a dita peça, quais modelos de passerelle, fazendo-a flutuar em torno do corpo, tentando passar para lá do ecrã a fluidez (termo abundantemente utilizado) o conforto, a qualidade, a textura do tecido e todos os outros atributos de um mero tecido mais ou menos costurado . “Estou apaixonada por isto” (uma blusa, um casaco) “estou rendida” (também é um termo comum nestes contextos) e mais: “é hiper mega giro” ou mesmo “é divino ou divinal!”
Como dá para perceber, tenho assistido a alguns vídeos deste tipo, vídeos cujo objectivo é vender roupa, sapatos, adereços, bijuteria e, acreditem, tudo, invariavelmente, é “lindo a maravilhoso”, “hiper mega giro” e outras qualificações tais como, “giro nas horas’, “para lá de giro”, “lindo de mais”!
São vendidos esses produtos? Aparentemente, sim, mas escassamente verifiquei se os superlativos lhes assentam porque não os compro.
Estas considerações ocorrem-me a propósito de um contexto humano que ronda o absurdo no qual são hipertrofiadas, até ao extremo, as coisas e as situações banais, ao mesmo tempo que é lançado um manto de ignorância sobre o que realmente importa.
Espanta-me, por exemplo, o protagonismo do futebol ( não devia espantar-me, bem sei, de tão evidentes são os múltiplos motivos), o modo como todos se empolgam e sofrem e discutem a propósito de um jogo banal que qualquer criança pode compreender e praticar. Fico quase em estado de choque quando observo os dirigentes do país a tecer comentários aos jogos, a elogiar aqueles que  jogam como sendo heróis nacionais, a tomar para si as vitórias ou aspectos do jogo utilizando a primeira pessoa do plural. Oblitera-se o facto evidente de todos esses “heróis” serem profissionais muito bem pagos, muitos deles milionários, que jogam, preferencialmente, para justificarem a sua recompensa monetária e, num lugar modesto, com o objectivo de defenderem a bandeira do seu país ou o clube a que pertencem e lhes paga para ganharem. É deprimente observar o comportamento dos adeptos, cegos e surdos para as realidades subjacentes ao jogo, mas loquazes na defesa dos clubes ou ídolos , como se eles fossem deuses ou seres super humanos! Incomoda-me perceber que o futebol é uma indústria, geradora de milhões, e que o jogo em si, enquanto desporto, é antes uma batalha, uma luta violenta dentro do campo na disputa insana de um lance, quantas vezes movido pelo acaso, através do qual a bola rompe a defesa e entra na baliza! E no entanto, quando certos jogos , considerados importantes, acontecem, o mundo começa a girar, dias e horas antes, em torno do acontecimento, numa gigantesca especulação, numa voraz e muitas vezes insana diatribe acerca das possibilidades do resultado. Porque, afinal, é esse factor que importa , o resultado, e ninguém pensa que, após o pontapé na bola dirigida sempre, para este ou aquele caminho, rumo ao confinamento da baliza, à revelia do seu guardião, o ponto de chegada foi dirigido pelo acaso, por forças aleatórias que comandam, afinal, todo e qualquer movimento no planeta Terra.
A superficialidade e o lugar-comum tomaram conta das actividades humanas: tudo está balizado pelo mais baixo nível. E, apesar dos exemplos de que me servi, e podem ser testemunhados por qualquer um, esta vulgarização das palavras e dos actos é extensiva às realizações superiores do homem. E eu vejo a arte, na pintura, por exemplo, ser elevada a uma categoria superior e digna de prémio ou reconhecimento quando, afinal, e observando bem , o artista deixou simplesmente escorrer a tinta pela tela e depois aproveitou o trajecto casual para definir ou sugerir figuras e símbolos que não estavam, de todo, na sua intenção . Arte?! Pode ser que seja, não excluo inteiramente essa possibilidade; mas confesso as minhas dúvidas.
A literatura enferma da mesma banalidade. E há textos, livros inteiros e poemas, cuja linguagem é absolutamente desadequada e marcada pelo erro linguístico e de construção. Esses “escritores” julgam ter produzido uma obra de vulto, porque soa bem à sua limitada formação literária e encontra leitores fiéis junto daqueles que, igualmente, nada sabem da diferença entre literatura e senso-comum.
Tudo isto que tomo como alvo (e a lista é avassaladora) é tanto mais temível quanto todos opinam, todos parecem saber o que é arte, literatura, beleza, maravilha! E afigura-se que, por ser a voz da maioria, ofusca por completo o veredicto creditado daqueles que, de facto, poderiam dar o testemunho.
A verdade é que esses raramente o fazem; e ainda que ousassem fazê-lo ninguém os ouviria. E esta é ainda uma anomalia do nosso tempo: os arautos da banalidade, do erro, do lugar-comum são os gurus das multidões, principalmente quando, por esta ou por aquela razão, os conduzem a lugares de chefia ( porque ser chefe, hoje, não resulta de superioridade). Aqueles que, de facto, poderiam conduzir o mundo a patamares elevados são ignorados ou incompreendidos – porque não falam, e não podem falar, a língua rasteira da ignorância, da subserviência ou do medo.
O mundo dos homens não está definitivamente perdido,  ainda que os sinais sejam alarmantes: eu acredito que, um dia, um assomo subtil de consciência despertará: primeiro um, depois, dois, mais tarde cem, mil , um milhão! Romper-se-á o véu da ilusão e os homens começarão a ver.

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