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Cultura, Literatura e Filosofia

A SUPREMA NECESSIDADE DE REGRESSO AO UNO

Regina Sardoeira
Há inúmeras inconsistências nas atitudes e nas acções dos humanos – nas minhas , portanto.
Lembro-me de algumas; vejamos.
As pessoas dizem que amam os animais (às vezes dizem que os adoram). E contudo continuam a comer carne. E no entanto continuam a achar que a caça é um desporto. Ou que a tourada é uma tradição ou um fenómeno artístico que convém preservar. Muitas montam a cavalo ou regozijam-se com corridas e competições onde eles são humilhados. E esmagam e envenenam as espécies incómodas.
Há dias vi um ouriço-cacheiro à beira da estrada pronto para atravessá-la e não hesitei: saí do carro, agarrei o animal que se encolheu por completo e fui levá-lo para o campo, em frente, o mais afastado que pude da estrada. Depois pensei se esse simples acto,  terá feito alguma diferença no cômputo geral. Se o animal não terá voltado à estrada para seguir o trajecto que se propunha quando o desviei do perigo. Se, entretanto, não terá sido inevitavelmente atropelado e reduzido a nada. Que significa um ouriço-cacheiro no contexto total do mundo? Apesar disso, sei que o faria de novo, porque estes e outros animais perderam o seu habitat , usurpado pelo homem, e deambulam no meio do perigo; e, uma vez que a natureza os continua a engendrar, têm tanto direito à vida como nós.
Há pouco tempo li uma questão acerca de um caso onde um animal adoptava outro e jamais se afastava dele. E a dúvida era: ” O que aconteceu à humanidade?” Ou seja, por que razão os homens ficam tão aquém dos restantes animais, quando se trata de ser solidário, apoiar, prestar cuidados?
O problema do, homens (e a sua vantagem) é a consciência. Através dela, desde o momento em que começaram a entender o mundo à sua volta e no interior de si, nunca mais cessaram de hostilizar a natureza, convertendo-a noutra coisa diferente e para seu proveito (descurando as consequências); nunca mais viram o outro humano como idêntico a si mesmo e guerrearam-no. A vantagem de ser consciente e, desse modo, poder compreender-se a si mesmo, escassamente tem dado frutos: porque quase todos os homens vivem em desarmonia consigo, seguem trajectos mentais que os rebaixam, traçam planos de vida em conflito com a sua própria essência. E sentem-se infelizes, revoltados, enfurecidos com o mundo.
Mas o mundo, ou seja todo o conjunto dos humanos nos seus casulos individuais, só representa um grande mal porque a consciência humana, esse benefício nosso, criou pequenas células onde cada um se crê isolado: uma vida àparte, um núcleo àparte , rodeado de paredes e de muros. A verdade, porém, é que todos estamos indissoluvelmente ligados e já o sabiam os gregos antigos quando inventaram a tragédia para, no espírito da música, recuperarem o Uno primordial.
De facto, nos primórdios, antes do advento da consciência e da razão, o mundo era um organismo vivo onde cada elemento só existia e encontrava razão de ser na harmonia com os outros. Mais tarde, a individuação fragmentou a natural unidade dos seres no mundo e da natureza – tudo era uma coisa só – e a parte do todo, o indivíduo, desarreigou,-se dos restantes seres, crendo-se autónomo.
As consequências foram e são dramáticas porque o que era uno e só vivia coeso nessa condição, perdeu o equilíbrio; e advierem as guerras, as pestes, a discórdia.
Cada átomo ou célula do gigantesco organismo universal aspira aos outros átomos ou células que lhes são intrínsecos: como pode viver-se nesta atroz separação?
Por terem essa percepção, criaram os gregos, a tragédia, não somente como obra de arte mas essencialmente como ocasião de catarse e de regresso ao Uno. Também por isso , ainda que a outro nível, os jogos pan-helénicos ou olimpíadas promoveram a união de um povo separado em pequenos estados independentes.
Unir o que está dramaticamente cindido, afastando a parte do todo a que pertence, parece-me ser a solução deste nosso tempo: unir a vida à vida, seja ela qual for: porque não há diferença. E o “meu” pequeno ouriço, inconsciente, do perigo que o espreitava quando deu início à caminhada, mereceu, sem dúvida, que eu parasse , acolhendo o seu corpo, coberto de picos (que frágil armadura perante a força mecânica de um automóvel!) e lhe desse uma oportunidade de ser . Por mais algum tempo.

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