“Onde? Onde? Passado algum tempo
pareces um pássaro.
Paras, mas a tristeza continua a chamar.
Deixa-te e voa para longe
sobre os frios campos nocturnos,
à procura, à procura,
sobre os rios,
sobre o ar vazio.”
Trecho do poema “Os Entes Queridos”, In: Magaret Atwood, “Afectuosamente”, Bertrand Editora, 2021
Anabela Borges
Ainda não tinha Julho subido à categoria de mês nas quadrículas do calendário, já eu tinha encomendado, na livraria habitual, o livro de poesia “Afectuosamente”, de Margaret Atwood. Antecipei-me. Soube que a autora tinha escrito esse livro e queria ler, ansiava por ler esses poemas o quanto antes, como se uma fome negra e duradoura me andasse a roer as entranhas. O meu amigo livreiro enviou-me uma mensagem a dizer “o livro só será lançado em Julho”, ao que eu respondi, fazendo brincadeira, “ando muito avançada no tempo; até peço livros que ainda não saíram”, tendo ele retribuído como resposta, numa brincadeira mais prazenteira ainda, que o tempo de longa amizade nos permite, “LOL”, que corresponde, na linguagem mal ataviada da social media, a uma big-sonora gargalhada. Antecipei-me no pedido, como acho que gostaria que tivesse acontecido com o mês de Julho: que viesse rápido, que se instalasse nas calendas dos meses, que me desse essa alegria e paz inigualáveis que só mês de Julho me dá.
Era então o tempo de Junho ainda, infinitamente Junho, junho-cansado, junho-esgotado, Junho avançando lentamente, puxado por uma aragem secundina, fria e gasta, como os foles de um velho acordeão. Arrastou-se, como um sonido melancólico de lamento.
Depois veio, finalmente, Julho e com ele veio o livro. E o livro trazia pássaros, todos os tipos de pássaros.
Há pássaros que trazem apenas frieza no canto da manhã, mas nem sempre sabemos senti-la. Não pensamos nisso. Ouvimos apenas o canto do pássaro como mais um canto de pássaro, sem nos questionarmos, e outras vezes nem damos por ele.
E este pássaro que agora – no momento em que escrevo –, pelo meio do vento infernal que se levanta, este pequeno pássaro que canta um pio singular, único, repetido infindavelmente, de uma forma inacreditável, como se fosse uma cena inventada para um conto, “PIU!”, serei apenas eu a ouvi-lo? “PIU!”, está nisto há mais de duas horas. O que faz um pássaro piar assim? “PIU!”, como um tempo sem fim, como um grito de socorro, um choro ou um aviso? Serei apenas eu a ouvi-lo?
Ando a estudar a linguagem dos pássaros, mas ando a fazê-lo há demasiado tempo. E quando penso que terei aprendido alguma coisa, aparece um pássaro como este, que apresenta uma lamúria sem fim, e eu constato que, afinal, nada sei sobre a linguagem dos pássaros. Então, começo de estudar tudo outra vez, desde o princípio, embora, durante o processo, passe o tempo a questionar-me sobre quando é o princípio, e deve ser por isso que faço tão poucos avanços. Pobre pássaro. Por este andar, só se calará quando a noite se puser bem afundada sobre todos os espaços à sua volta, como um extenso véu de sombras.
O vento faz despertar a dança louca dos pinheiros. Estes zurzem e gemem e fazem estalidos, retorcem os ramos de esforço, como acontece num dia de Inverno. Há uma névoa branquicenta e fina que cobre todo o vale em volta, e a típica luz brilhante e aberta de Julho não se deixa conhecer.
Quero ficar no alpendre, a ler e a escrever, mas o vento agita-me fortemente os cabelos e as folhas dos cadernos, sacode tudo em volta. Arrefece-me os pés e desconcentra-me. No meio daquele bulício todo provocado pela ventania, o pequeno pássaro continua a piar, alto e ritmadamente. E eu sinto falta de outros pássaros, bem mais positivos nesta altura do ano, de sonoros cânticos, cheios de um exaltado entusiasmo. Sinto falta da luz verdadeira de Julho, que tarda tanto em regressar.
No prefácio do livro, Atwood escreve “Anseio por ainda mais pássaros no próximo livro de poemas, caso venha a haver um; anseio também por pássaros no Mundo. Vamos todos ter Esperança”. Apreensiva, recolho os livros, os cadernos e as canetas e vou para dentro.