Mateus Oliveira
Em ‘Sobre as Escolhas’, o sempre genial Agostinho da Silva, dá-nos, em poucas palavras, uma extraordinária lição sobre o mais extraordinário dos valores: a Liberdade.
“O Nosso Desejo de Liberdade não é Sincero
Se estamos todos muito bem preparados para reclamar liberdade para nós próprios, menos dispostos parecemos para reclamar sobretudo liberdade para os outros ou para lhes conceder a liberdade que está em nosso próprio poder; se conhecêssemos melhor a máquina do mundo, talvez descobríssemos que muita tirania se estabelece fora de nós como se fosse a projeção ou como sendo realmente a projeção das linhas autocráticas que temos dentro de nós; primeiro oprimimos, depois oprimem-nos; no fundo, quase sempre nos queixamos dos ditadores que nós mesmos somos para os outros; e até para nós próprios, reprimindo todas as tendências que nos parecem pouco sociais ou pouco lucrativas, desejando muito que os outros nos vejam como simples, bem ajustados, facilmente etiquetáveis.”
Ainda que escritas em 1970, 4 anos antes de Abril, estas palavras são, hoje mais do que nunca, extraordinariamente lucidas e incisivas. Porque, efetivamente, o nosso desejo de liberdade não é sincero. Porque em pleno século XXI, temos uma necessidade quase patológica de procurar valorização e reconhecimento fáceis, imediatos e destituídos de significado. [Reside também aí este advento das redes sociais em que a fotografia, a frase fácil ou o cliché barato procuram a validação instantânea via “likes”]. E, sobretudo, porque queremos todos ser opressores daqueles que ousam pensar diferente, subvertendo irónica e completamente os valores que nos permitiram chegar aqui. Precisamos, urgentemente, de nos reeducar para uma real cultura democrática.
Efetivamente, por estes dias em que – curiosa e antagonicamente – se aproxima um ato que é (ou devia ser) em si uma conquista da liberdade e da democracia, começam a vir à tona tiques absolutistas daqueles que tinham inerente a responsabilidade de ser o garante de fomento dessa mesma cultura democrática. Em contrapartida, usam-se entidades – sociais, culturais, desportivas, etc. – num jogo que visa a perpetuação de poder através da manipulação do mais elementar direito democrático. Tal facto – particularmente bem analisado nas reflexões do cientista político americano Gabriel Almond – leva a uma alienação do envolvimento dos cidadãos nas dinâmicas da sua própria “micro sociedade”.
Voltando a Almond, é fundamental que o conceito de cultura democrática seja assumido como “um conjunto de crenças, atitudes, normas, percepções e inclinações, que alicerçam a participação”. Ou seja, todos são necessários… e nem sempre e só os mesmos, porque a cultura democrática se fomenta muito e de forma constante através de novos intervenientes, sem os vícios inerentes a quem se perpetua no poder – veja-se, por exemplo, o recentíssimo caso de LF Vieira. Aliás, apenas um trabalho coletivo, que envolva a generalidade das pessoas e das populações pode promover uma mudança sistémica na cultura democrática de cada vila ou cidade e, inerente e consequentemente, do país. É fundamental haver na comunidade a percepção geral de que quem tem o poder de gerar transformação [aculturação democrática] na sociedade e na política é o próprio cidadão. E cada um de nós tem de assumir o seu papel nessa mudança, sempre com o respeito pelas escolhas – iguais ou diferentes – de cada um.