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IR A ALFÂNDEGA DA FÉ E A SAMBADE

“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”
Fernando Pessoa

Regina Sardoeira 

Numa época em que as pessoas viajam para o litoral, ao encontro do mar e da praia, eu decidi inverter o destino. E fui a Alfândega da Fé, Trás-os-Montes.
Não o fiz por espírito de contradição já que gosto muito da atmosfera marítima e por aí tenho viajado abundantemente; mas aconteceu querer recomeçar as minhas Viagens Literárias , interrompidas em Março de 2020 e ter esta região de Portugal inscrita no meu projecto.
Além disso, tenho uma amiga, natural de Sambade, uma das freguesias de Alfândega da Fé. E, de tal modo ela me vem falando das peculiaridades da sua terra, das gentes, dos sítios, das paisagens, dos costumes, das actividades culturais que ali acontecem e que ela própria coordena ( o Clube de Leitores de Alfândega da Fé é um exemplo da sua dinâmica), que, sem hesitações, tomei essa terra como destino.
Como faço habitualmente, estabeleci um período de dois dias, reservei um alojamento e, a meio de uma tarde quente deste Verão instável, enfrentei a estrada.
O caminho não tem grandes dificuldades ou surpresas. Primeiro, segui a A4, no âmago da Serra do Marão, depois rumei para leste e, através do IP5, .cheguei a Alfândega da Fé, uma vila que desconhecia inteiramente. Uma vez ali, dispus-me a procurar o alojamento, seguindo ruas e avenidas com a voz do GPS, enviando-me daqui para ali (“siga por 100 metros e vire à direita, saia da rotunda na terceira saída, curve ligeiramente à esquerda e siga em frente”;…) . Fui tentando obedecer. Mas eu sei, de experiências anteriores, que, nos centros urbanos , estas orientações falham amiúde. Por isso não estranhei nada quando percebi que já não estava na vila, que a estrada me revelava segredos da zona a que chegara: terra vermelha, de um lado e do outro, árvores, terrenos cultivados ( identifiquei sobreiros, castanheiros e amendoeiras) , muita tranquilidade, uma luz magnífica… e não me importei minimamente de ter assim abandonado o meu lugar de chegada.
Bruscamente, poucos quilómetros percorridos, uma placa mostrou-me que estava, justamente, em Sambade, a aldeia mítica, terra natal e de habitação da amiga que iria servir-me de guia! Atravessei-a. Vi casas, à beira da estrada, entrevi ruas, deparei com a igreja matriz e segui. Poderia, é claro, ter parado e ligado à minha amiga; em vez disso, avancei e saí de Sambade.
Em pouco tempo, soube que estava a subir uma Serra e que essa era a Serra de Bornes! Então, dispus-me a desfrutar de uma paisagem admirável, com o sol de frente, um horizonte límpido e uma sucessão de morros verdes ponteados de casas, do lado esquerdo. Pouco depois de chegar ao sítio que elegera como “o meu destino”, ainda antes de pôr o pé no solo da vila onde iria pernoitar e já estava mergulhada numa espécie de aventura!
Gosto de me perder assim. Não pergunto, em geral, onde se situa este ou aquele sítio, prefiro encontrá-lo ou que ele me encontre. Por isso, este mergulho na serra de Bornes, esta chegada prematura a Sambade, este deslumbramento perante a grandiosidade de uma serra iluminada e cheia de mistérios agradaram à minha sede de descobrir caminhos, à minha ânsia de descoberta.
Creio que cheguei ao alto da serra de Bornes. Pelo caminho, já bem no cume, uma indicação mostrou-me o caminho para o Hotel e Spa de Alfândega da Fé, onde iria jantar no dia seguinte: não fui verificar, deixei a surpresa incólume. E então, abandonado o GPS que deixara de entender as minhas intenções, inverti a marcha, desci a serra, entrei, uma vez mais, em Sambade e, sem saber muito bem como, já na vila, olhei para a direita e vi, numa casa, o nome do meu alojamento.
Foi deste modo que cheguei, de novo, a Alfândega da Fé.
Logo encontrei a minha amiga, alma transmontana, espírito doce e também determinado, palavras afectuosas na pronúncia inconfundível do sítio. Sentámo-nos numa esplanada, à frente da casa da Cultura Mestre José Rodrigues, um sólido edifício projectado pelo arquiteto Alcino Soutinho, com a capela de São Sebastião à esquerda e um espaço relvado a dar sinais, mais ao longe.
Por ali jantámos, depois fomos observar um gigantesco painel de azulejos criado por vários artistas e intitulado “Quatro olhares sobre Alfândega da Fé”. O painel foi executado em 2005, no âmbito de um simpósio de pintura organizado pela Câmara Municipal e Cooperativa Artística Árvore, pelos pintores Rogério Ribeiro (que coordenou), Américo Moura, Pedro Rocha e Alberto Péssimo. Os cerca de oito mil azulejos, que o transformam no maior painel de pintura cerâmica do distrito, foram preparados localmente pelo ceramista e pintor Armando Lopes.
Os temas tratados subordinaram-se ao título que lhe dá nome e retratam elementos imaginários, históricos e culturais do território, nomeadamente a lenda dos Cavaleiros das Esporas Douradas, as tradições e as culturas agrícolas, as gentes que lhe dão forma e até a emigração como fuga para procura de novas oportunidades.
À hora do café, outro amigo e habitante da terra, um homem de múltiplas artes e muitos ofícios, cujo carácter não serei capaz de definir com propriedade, mas cujas qualidades intrínsecas reconheço, juntou-se a nós numa outra esplanada da vila.
A conversa fluiu com entusiasmo e naturalidade, sobre uma multiplicidade inenarrável de temas até à hora de recolhermos: eles para os seus domicílios habituais, ela, em Sambade, a uns 6 quilómetros de distância ele, ali perto, numa rua próxima, eu, para o meu alojamento, bem no centro da vila transmontana.
Alfândega ou Estalagem segura (do árabe Alfandagua); da Fé, porque, segundo uma lenda, deriva da libertação das donzelas, tributo que seria exigido pagar ao dono do feudo. O povo, cansado desta arrogância, pegou em armas e lutou contra o mouro, matando-o e aos seus soldados. Daí em diante puderam viver tranquilamente.
No dia seguinte conheci o Hotel Spa de Alfândega da Fé, onde jantei, desfrutei de um fim de dia magnífico na majestosa varanda do hotel, primeiro com o clarão laranja e rosa do poente, mais tarde com a abóbada negra do céu recamado de estrelas e as aldeias e estradas ao longe assinaladas por pequenos círculos brilhantes, quais luzeiros terrestres, cintilando no solo.
Está foi uma viagem diferente das oito anteriores porque partilhei o tempo com dois amigos e daí advieram outras emoções e muitas conversas. No fim, encontrei, numa loja, chávenas diversas com mensagens poéticas e escolhi as de Fernando Pessoa, cujas palavras me servem de epígrafe.
“O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem”; e assim foi. Dois dias e meio em Trás-os-Montes não me deram, na íntegra, a riqueza profunda da terra e dos seus produtos, o sabor da sua cultura, a noção do carácter das suas gentes; porém, tudo o que vivi foi de uma intensidade muito maior do que poderei, para já, dar notícia.
“Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.”
Momentos inesquecíveis: a minha ascensão inesperada ao alto da Serra de Bornes e depois o deslumbramento da paisagem crepuscular e nocturna da varanda do hotel.
Coisas inexplicáveis: a reunião de três amigos, em conversas longas e densas durante várias horas.
Pessoas incomparáveis: os dois amigos, já referidos, de índoles diversas, mas unidos na categoria de seres incomparáveis, cuja especificidade me atingiu.
Terei que voltar em breve a Alfândega da Fé e a Sambade porque há, naquele solo e naquela atmosfera, uma riqueza e um mistério tão profundos que sinto só ter tocado, de leve, a fímbria.

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