(…) Dentro daquilo que é pequeno existe algo ainda mais pequeno que quer saltar para fora, e dentro daquilo que é grande existe algo ainda maior que o quer manter prisioneiro.”
Helena Ferrante, A amiga genial, 2° volume
Regina Sardoeira
Quando li esta frase, inserta no livro de Helena Ferrante, num contexto bastante ambíguo, tive necessidade de a transcrever.
A obra narra, com imensos pormenores e grande profundidade, a vida de duas crianças, depois jovens e, mais tarde, adultas ( é uma tetralogia) nascidas num bairro pobre de Nápoles e, cada uma a seu modo, ávidas por romper os limites territoriais e, com esse acto, ampliar as suas possibilidades, dar vazão aos sonhos e ambições que as animam desde sempre.
A autora não permitiu até hoje que lhe devassassem os dados biográficos e, por isso, pouco se sabe acerca dela sendo o próprio nome considerado um pseudónimo. Contudo, Elena Ferrante revela um conhecimento minucioso e íntimo acerca da cidade de Nápoles e da vida das classes baixas, a partir da segunda metade do século XX, o que me faz crer, enquanto leitora, estar perante uma autobiografia.
Vou, aproximadamente, a meio da tetralogia e da saga existencial das duas amigas, Lila e Lenú, pelo que é demasiado cedo para tecer comentários; porém, esta frase, proferida por uma delas, em diálogo, prendeu a minha atenção.
O grande e o pequeno, estas duas dimensões criadas pelo homem para quantificar tudo o que é passível de ser reduzido a estritas grandezas, capazes de estabelecer as mais diversas hierarquias; e contudo, o pequeno oculta uma realidade mais pequena ainda e até ao infinito, e o grande algo de maior e, possivelmente, até ao infinito também. Dois infinitos, portanto, unidos ou coincidentes num ponto, também ele infinito!
Mas o pequeno, se o considerarmos de forma particular, serve de revestimento, de abrigo (ou de cárcere) a qualquer coisa mais pequena ainda, cuja pequenez quer vencer os limites , expondo-se, ampliando-se, destruindo a pequenez original, podendo tornar-se grande. Só que o facto de poder transformar -se em grande não anula os obstáculos, pois essa nova condição gera diferentes qualidades: e então, dentro daquilo que é grande nasce algo maior ainda que deseja aprisionar a sua própria grandeza!
Interpretando a citação ao pé da letra, e sem qualquer articulação com a trama do livro de Elena Ferrante, percebo que a vida, em todas as suas formas, contém esta dicotomia, traduzida na ânsia de fender a carapaça, libertando a energia contida num invólucro diminuto (porque afinal a pequenez do que está dentro do pequeno não o é, de facto) e, na dimensão oposta, o grande, tendo em si forças maiores do que ele próprio, reprime essa grandeza oculta com receio de ser aniquilado no processo.
Estas duas dimensões, parecendo conflituar, encerram a mesma característica: a necessidade de preservar a pequenez já que dar vazão ao seu impulso íntimo tenderá a destruir-lhe a efectividade (mesmo pequeno, o ser existe integralmente) e, em simultâneo, o grande fará os possíveis para que a força (maior do que ele próprio e nele aprisionada) não fenda as fronteiras e o destrua. Em ambos os casos está presente o mal que , ao longo dos tempos, impede a humanidade de evoluir: o medo.
O medo trava a acção dos homens por razões múltiplas mas, essencialmente, pela incapacidade de enfrentar o novo que, enquanto tal, é sempre desconhecido, potencialmente aterrador. O medo faz com que o pequeno se encolha mais e mais na sua concha, incapaz de se encarar, daí em diante, sem abrigo; o medo paralisa a força oculta do grande que não deseja ver sair de si próprio um adversário poderoso. E é por essa razão que a passagem dos séculos e as aparentes voltas e reviravoltas da história – aquilo a que se chama evolução – não tiveram poder para revestir de verdadeira grandeza a humanidade.
Contenção, abrigo, parcimónia, auto defesa (até perante si mesmo) são expressões do medo, bloqueiam a energia do pequeno e do grande, afinal unidos. Esta comum propriedade anula as diferenças de grau, já não podemos falar em pequeno e grande , ambos implicados numa luta contra si próprios que os faz conter-se e anular-se numa incapacidade de desocultação.
Penetrando, deste modo, nas linhas um pouco obscuras da frase que me serve de epígrafe, concluo que a humanidade se vem arrastando numa espécie de torvelinho sem fim à vista, e não creio que exista qualquer solução capaz de redimi-la. E de nada importará ser pequeno ou grande visto que um e outro se degladiam, de si para si mesmos, de modo perene e insuperável.