Regina Sardoeira
Não tenho nada para dizer ao mundo porque o mundo é uma abstracção, sem ouvidos sem olhos, sem mãos, o mundo é uma fera de milhões de corpos, desnaturada, enviezada, arrevezada; e nada pode dizer-se a semelhante utopia.
Não tenho nada que dizer ao mundo, já não me agrada enunciar-me perante ninguém. Se procuro o indivíduo, encontro uma fera de tamanho menor que essa, a que chamei mundo, mas absolutamente obcecada por si mesma, com os olhos baixos e quase cerrados, de tanto contemplar o próprio umbigo.
Nada tenho que dizer a tais narcisistas, esses, para quem os outros são os receptáculos de mágoas ou de gozos instantâneos e que só querem fugir a sete pés, logo que lhes foi satisfeita a necessidade de momento.
Não tenho nada que dizer-lhes, portanto. Aliás, as palavras estão corrompidas e gastas e mesmo que uma ou duas mantenham a substância que as fez nascer, se as devolvemos para certos ouvidos o que fica é uma distorção inominável a que não é possível chamar comunicação.
Não sei se estou a escrever um texto céptico. Aprendi que o cepticismo é uma arma de dois gumes: mesmo não crendo, atiramos palavras, mesmo tendo a certeza que ninguém vai responder, ou sequer passar a vista pelo nosso discurso, obstinamo-nos em dá-lo ao mundo esse, que como disse, não tem com que escutar-nos ou ver-nos.
Paradoxo alucinante, contradição visionária, e contudo, teimosamente, desfiamos palavras, em textos oblíquos, nos quais ninguém repara: porque reparar é mais do que ver, reparar é ver por detrás da imagem e para lá das palavras.
Eu li, no Ensaio Sobre a Cegueira, desse excelso escritor que é, sem dúvida, o expoente máximo da literatura nacional, mas que (e ele soube-o bem) os portugueses persistem em ignorar, porque a inveja corrói a capacidade de admirar e render homenagem, a seguinte sentença tirada do Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
E não pensem que me deu prazer ler este livro do Saramago! Quantas vezes o atirei para o lado, com asco, quantas vezes invectivei o autor, por me obrigar a ver a humanidade (a que pertenço) nesta espécie de espelho macabro da nossa horrífica condição! Mas ia sempre buscá-lo, mais tarde, alisava-lhe as páginas, procurava o parágrafo onde tinha interrompido a leitura nauseante e continuava, enquanto podia, a ver desfilar a própria miséria a que pertenço
E o pior é que não há, neste Ensaio Sobre a Cegueira, qualquer espécie de gesto redentor, todos cegam, e a testemunha, que só não foi atingida pela epidemia branca para poder constituir-se em narradora, necessitou de fingir-se cega como todos os outros, para não ser arrastada para a servidão, para não ser condenada a um destino pior ainda.
De facto, Saramago ensinou-nos que o provérbio “No mundo dos cegos quem tem um olho é rei” é um autêntico ludíbrio: qual rei, qual chefe, aquele que vê, no universo branco da cegueira, prefere manter fechados os próprios olhos, disfarçar a lucidez, sob pena de ser reduzido à escravatura que a maioria consegue sempre pôr em prática, só porque é a maioria: esse monstro de milhões de cabeças de que vos falava no início.
Que importa que sejam cegos.
Aos tropeções, todos unidos na insanidade, pelos caminhos enviezados da podridão e dos mais nefandos actos corruptivos, os cegos detêm o poder: e nenhum visionário de um só olho conseguirá esclarecê-los, quanto mais dominá-los.