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Cultura, Literatura e Filosofia

AS LEVIANDADES DO TEMPO

Soni Esteves

Chegou setembro. Entrou anunciando chuva e, pela noite, fez-se ruidoso, troando pelos montes, ao longe, como se quisesse já afirmar uma outra estação, um outro ciclo que o fim de férias nos impõe. Foi noite de tempo impiedoso, tão impiedoso quanto o Tempo que contamos dia a dia, que medimos pelo relógio ou pela emoção, quase sempre em desacordo com o nosso querer. Uma hora deixa-nos sem saber o que fazer dele, interrogamo-nos como o cumprir sem que nos pese, outra vemo-lo escapar-se por entre as malhas dos dias. Não foram estranhos esses sentimentos ao meu verão de 2021. Tive do melhor e do pior.

Este verão foi, ainda, tempo de tímidas viagens, mas houve sol, praia e convívios com verdadeiro sabor a férias. Estamos cansados de ser prisioneiros. Somos seres de liberdade, como os gatos. Talvez por isso este ano os patos já não tenham crescido tão livres nas margens dos rios e as corsas não tenham invadido cidades. Os golfinhos continuam a visitar o Tejo, mas as águas no Douro não são tão transparentes e as cidades breve voltarão ao caos que as faz nunca dormir. Chegou setembro envolto num manto de nostalgia e recordo os amigos que este verão deixaram simplesmente de contar o Tempo.

Um dia ouvi dizer que o Tempo era um velhinho de barbas brancas, mas não é verdade. O Tempo não tem idade. Consegue ser belo, mas também terrífico, desejado, odiado, poderoso e inconstante, dá e tira com igual avidez ou complacência. Conta-se que um dia lhe apareceu pela frente a Vida. Jovem, alegre e exuberante, fez o Tempo apaixonar-se por ela. Foi um período risonho, de grandes criações, entre elas a própria Eternidade. Mas, certo dia, surge perante o Tempo um outro ser. Era discreta, sofisticada, e evidenciava uma tal elegância de porte que disfarçava a frieza dos gestos absolutamente calculados. Os olhos eram dois lagos escuros e profundos e neles estavam guardadas todas as emoções, se as havia. O conjunto era tão misterioso que despertou a curiosidade do Tempo. Andou inquieto por uns tempos, a Vida ficou nervosa, tornou-se desleixada, perdeu luz. Mas a Morte, assim se chamava a outra, não queria o seu lugar, queria apenas partilhá-lo “há espaço para ambas”, pensava. E então insinuou-se perante a Vida, fez-se amiga, prometeu ajudá-la a controlar a Eternidade e as birras do Tempo, sempre tão inconstante. A Vida, primeiro relutante, acabou por aceitar. A Morte era esperta, sabia o seu lugar e só agiria de acordo com o combinado. Ela surgiria mansa e decidida e, como ladrão que assinala a casa que mais tarde deve assaltar, marcaria o corpo daqueles que pretendia levar consigo, mas a Vida teria sempre a última palavra. E assim foi. Por vezes, a Vida demorava a decidir-se a abandonar um corpo marcado, numa clara afirmação de poder. A Morte, agastada com os manias da Vida, desatava a marcar corpos aqui e ali, marcas profundas, enraivecidas, em evidente provocação, e a Vida então compadecia-se daqueles corpos condenados e acompanhava-os num derradeiro e misericordioso sopro, porque afinal é sempre a Vida que tem a última palavra, mesmo que seja a Morte a levar-nos a todos. E foi assim que a Vida aceitou a Morte como amiga e o Tempo se tornou bígamo. Na sua eterna inconstância, ele ama a Vida e Morte, suas eternas companheiras e zeladoras da Eternidade.

E eu, que sonhei esta história, não sei se me zangue com a Vida ou com a Morte, ou me compadeça das duas e de mim, ou do Tempo que afinal é joguete nas garras dessas duas e só faz o que elas querem.

 

 

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