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Cultura, Literatura e Filosofia

A OBRA DESTRUIDORA DO HOMEM

Regina Sardoeira
O homem, esta massa indistinta a que chamamos humanidade, é fundamental e intrinsecamente, mau. Não me refiro ao Indivíduo, à célula do todo a que se deu o nome de sociedade, porque nele, e somente nele, reside a verdade . Porém, isso a que chamei verdade e que, escrito assim, parece um mito, só pode revelar-se quando a célula puder desapegar-se das demais, tomando -se a si própria como um todo. No dia em que todos os indivíduos tomarem consciência da sua absoluta e total autonomia, desapegando-se do vício social, o homem encontrará, por fim, a harmonia na natureza.
O homem, refém da sociedade, não sabe sequer quem é ou o que quer. Desde o nascimento foi condicionado, imbuído das regras dos outros que, por sua vez, as tinham recebido dos seus antepassados. As regras, no meio familiar, aquilo a que usamos chamar de educação e cujo valor levantamos acima de todos os outros, não passa de uma profunda e lesiva alienação – a primeira.
À criança nunca é permitido escolher, ela deve aceitar o que lhe ensinam, o que lhe dão, desde a linguagem até ao modo de vestir e, enfim, a todo o jeito de ser, tornando-se a reprodução exacta, tanto quanto possível, dos pais que se enlevam na obra que construíram. E contudo, essa “obra “decepou a originalidade da criança, impediu-a de perceber quem era, incutiu no seu âmago algo que não era ela própria mas um amontoado de marcas dos outros.
Longe de serem os benéfícos guias dos filhos que geraram, os pais são os seus mais próximos destruidores: retiram-lhes a possibilidade de se descobrirem por si mesmos, apontam-se como exemplos, querem, através deles, permanecer vivos para além da vida.
Que admira, pois, que volvidos alguns anos  sobre esta abusiva castração do ser mais íntimo da criança, ela desperte, aberta a consciência ao mundo, e olhe os pais com a competência recém-adquirida e comece a rejeitá-los? É comum aceitar com ligeireza este momento como sendo a “crise da adolescência”. E no entanto essa revolta perante aqueles que, originalmente, lhes deram o ser não passa da descoberta abrupta do grande equívoco das suas vidas até ao momento, da visão odiosa dos pés de barro dos seus ídolos da infância.
Ouvi falar de uma jovem que afirmou: “Até aos doze anos, fui feliz, depois acabou e hoje não sei quem sou.” Obviamente, ela percebeu o logro em que caíra quando idolatrou mãe e pai e fez deles os seus heróis, viu os erros deles, os vícios, a fealdade e começou a esvaziar-se dos princípios adquiridos de tão imperfeitas criaturas.
Quando terminou o penoso processo de auto-mutilação, percebeu que ficara sem nada, enfrentou o vazio de si mesma, o deserto árido de um interior desprovido de substância.
Quem sou eu? Que quero da vida? O que tenho em mim que me dê as respostas? Que hei-de fazer?
Privada do seu ego, moldado na ancestralidade dos pais, muito mais deles que dela própria, quando a consciência adveio não quis essa herança, soube que não eram dela os valores, as ideias, as palavras, nem sequer o nome que não pôde escolher. Ficou sem nada! Mas era preciso continuar, não lhe era permitido ou sequer possível deixar pai e mãe e partir para o deserto ou para a floresta, em busca de si. Havia os outros detractores do seu eu, feitos professores, havia todo  um séquito duvidoso ou francamente errado, inútil e mesmo nocivo, de aprendizagens, camadas sobre camadas de material, também ele antigo, também ele vindo dos outros.
Nada, absolutamente nada, nesse aglomerado de conhecimentos lhe deu a resposta necessária, embora os fosse assimilando na perfeição. Mas assimilar seria suficiente? Afinal, e de novo, estava a tornar-se semelhante ao que aprendia nos livros e que lhe era diariamente debitado. Afinal, o vazio estabelecido na negação dos valores paternos, estava ainda a ser preenchido com sentenças, fórmulas, teorias  que lhe entravam à força na mente para a transformarem numa coisa que não era ela própria.
E, quando precisou de escolher uma carreira universitária, viu-se no supremo dilema: que quero eu? Posso escolher qualquer um destes cursos, mas qual? Como vou, a priori, definir, neste segundo, todo o meu futuro?
De novo o peso das normas sociais que obriga o jovem a decidir o que vai ser, esse avanço no tempo absolutamente irrazoável, pois, escolher isto ou aquilo não dá qualquer garantia de realização pessoal, e assim esta jovem desencantada fez uma opção.
Este exemplo ilustra toda a vida do homem, o ser da sociedade – essa máquina formatadora da consciência individual. Nem todos adquirem a lucidez da percepção de que, esvaziados do que adquiriram no tempo, nada lhes resta de si – porque nunca puderam descobri-lo. Muitos, ainda assim,  proclamam: “Eu sou isto e aquilo, sempre fui, estava lá tudo quando nasci e desenvolveu-se, depois, para fazer de mim esta grande personagem”!
Não acredito neles, nesses homens superiores que pregam originalidade aos quatro ventos e  nunca sondaram, em tenra idade, a sua verdadeira raiz – porque não era possível.  Não acredito neles quando proclamam: “Sou artista desde que nasci, tudo estava lá”! Mas como puderam sabê-lo se, como qualquer um, foram moldados pela educação? Decerto descobriram-no mais tarde e criaram para si mesmos essa narrativa com que se enunciam espalhafatosamente perante o mundo – que se rende ao fascínio de um homem incomum que soube, no berço, o que já era, sem poder concretizá-lo, no momento, mas fazendo-o depois.
Histórias e mais histórias, camadas de ilusões, subterfúgios, pressões ,  um séquito horrendo de regras mutiladoras – aí está a sociedade, este conceito que não corresponde absolutamente a nenhuma realidade, esta palavra vazia criada para caracterizar uma massa acéfala de indivíduos proibidos de chegarem a sê-lo.
Vejam os animais , todos os outros, reparem como sabem o lugar que ocupam sem precisarem de regras, de códigos morais, de copiar ou rejeitar os pais, de ir à escola e escolher carreiras. Eles são o exemplo a seguir, o modelo de completude que nos falta, a serenidade de viver o destino que lhes está impresso na espécie sem necessidade de enfrentar o nada e o vazio na busca da sua natureza original. Mesmo quando caçam e lutam, fazem-no por necessidade natural e nunca para se arvorarem em heróis ou receberem medalhas e diplomas. Os animais são, soberanamente, são, apenas, sem adjectivos ou atributos de que não precisam – e tudo estaria no seu lugar se não fosse o homem, o grande demolidor.
Qual a solução? Existe, sim, mas é utópica pois envolve o desaparecimento da sociedade e, por inerência, das regras, da polícia, dos tribunais, de tudo o que controla e modela o indivíduo humano impedindo-o de ser: como todos os outros seres da natureza são. Quando escrevo “utópica” não pretendo dizer impossível, antes me refiro a uma transformação inédita, a uma avalanche de transformações radicais que um dia virão sem dúvida : logo que o planeta dê sinais ainda mais óbvios de exaustão e falência. Nesse momento quem viver perceberá, de chofre , todo o séquito de crimes e aberrações e extermínios feitos em nome de uma superioridade inventada, ela mesma condição de ruína.  Pode ser que uma nova era se levante. Ou pode ser que  o último homem perceba que vai ser engolido pela cratera que ele próprio construiu e, com ele desabe a inútil obra de tantos milénios.

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