REGINA SARDOEIRA
O que é a liberdade? Kant diz que a liberdade é o respeito pela lei e, cumprir o dever, a sua prática perfeita. E argumenta que, enquanto individuos, pertencentes a um todo social, aceitamos, tacitamente, o conjunto das regras emanadas do meio, sendo, nós próprios, e por essa razão, os criadores das leis pelas quais devemos reger-nos. Somos, nesta perspectiva, legisladores e súbditos: a nossa razão apela às normas de convivência social e obedecer-lhes é a condição da nossa liberdade – uma vez que fomos nós que as criámos. E criámo-las, não de um modo literal, mas na exacta medida em que percebemos a nossa inserção social, feita no acto de nascer, e prosseguida pela educação e logo na transmissão de deveres e de direitos.
Apesar disso, esta concepção de liberdade, extraída da ética kantiana, assemelha-se muito a uma espécie de escravatura: a prisão ao dever recorda-nos a coerção das leis, o perpetuar de tradições mais não é que uma teia de mecanismos aptos para cercear no indivíduo a capacidade de querer. O querer mais profundo e mais íntimo nega, uma e muitas vezes, a força da lei , quebra o poder do imperativo categórico – “Age de tal maneira que a máxima da tua acção possa transformar-se em norma de conduta universal” – porque o indivíduo que subsiste em cada um escassamente assimila o universal. O universal é uma categoria abstracta e qualquer abstracção embate na consciência do indivíduo como se fosse um mito, sem capacidade para conduzir acções.
Cada um deve seguir-se a si próprio, na tomada de consciência do eu, e criar, para guia da sua acção, um código estribado na intuição que lhe dará, com muito mais acerto que qualquer código pré-estabelecido, a forma exacta de viver em liberdade.
Acontece que vivemos num mundo escravizado por poderes e sistemas com muitos nomes e raramente somos capazes de abrir a nossa mente às intuições vitais. Elas estão lá, acolhidas no reduto mais secreto de cada um. Mas, ao longo dos anos, foram de tal maneira encobertas pelo contacto quotidiano com múltiplas interdições, vindas de todos os organismos sociais, que dificilmente conseguiremos ouvir a sua voz.
Vivemos, pois, uma contradição. Aspiramos à liberdade do querer e do agir: porém, as leis que nos dirigem na estrutura social recordam-nos a premência de cumpri-las, sob pena de sanção. E o receio de podermos ser vítimas de punição religa-nos à necessidade de pautar a existência pelos códigos instituídos. Com esse procedimento vamos abolindo, também, o poder da responsabilidade: não fomos nós que elaboramos, pessoalmente, as leis que depois somos coagidos a cumprir, elas não nos pertencem, emanam de poderes acima de nós – agir de acordo com elas não é uma afirmação da liberdade, com a sua quota parte de responsabilidade, mas obediência, quantas vezes a contragosto, a ditames que não mereceriam a nossa adesão íntima – se acaso pudéssemos aceder-lhe.
Penetrar na esfera das intuições puras, esse solo original da nossa consciência, e perceber o que nos convém enquanto seres da natureza, facultar-nos-ia a percepção da liberdade : a sublime possibilidade de vermos o mundo como a nossa casa de eleição.
Se observarmos os outros seres, que connosco usufruem do planeta, poderemos seguir-lhes o exemplo. Eles sabem, naturalmente, de um saber próprio e íntimo, tudo o que precisam para cumprir um destino próprio; e ao fazê-!o estão em harmonia. Talvez precisemos de observá-los atentamente, prescindindo da nossa suposta superioridade, e tirar dessa observação lições condutoras para alterarmos o rumo das nossas vidas. Como eles, nós ocupamos um espaço que deveria ser o nosso mundo privilegiado, um mundo de fruição e equilíbrio, de nós para nós mesmos, de nós para com todos os outros. Ao contrário disso, nós, humanos, não só deturpamos a essência que nos criou como, apoiados numa concepção de inteligência que achamos ser condição de supremacia, vamos destruindo o nosso habitat e ao mesmo tempo o dos outros seres da natureza.
A responsabilidade é a disciplina da liberdade e essa disciplina vem de dentro da consciência, não se deve a nenhuma espécie de controlo, e faz-se da harmonia entre o interior e o exterior. Só na exacta medida em que os humanos forem capazes desta liberdade natural e se tornarem responsáveis por ela, na disciplina emanada da própria consciência desperta, poderão aspirar à sua total emancipação.