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Cultura, Literatura e Filosofia

NOVEMBRO TRIUNFAL DE ESCURIDÃO

Estes meus contemporâneos lembram-me certos arbustos que nascem no côncavo de uma rocha, onde só uma rasa de terra é o possível pasto de qualquer avidez.”, Miguel Torga, In Diário, 1946

Anabela Borges

Trabalho. trabalho. trabalho. Sempre a correr, o trabalho louco a levar-me numa girândola descontrolada, com as folhas de Outono voando à mistura, sem tempo, sem descanso, sem lugar à contemplação – só trabalho.

Outubro desceu pelos outeiros, apressado, corado. Desceu, desceu, até se entranhar nos confins da terra; misturou-se no ar, até se perder nos céus de ouro e rosa e chumbo.

Avizinhava-se uma grande tempestade, quando fui ao monte apanhar urze para a minha amiga. Piquei-me nas mãos, nas agulhas finas, invisíveis por entre os tojos. Por vezes a vida tem agulhas escondidas que nos picam o corpo sem dó nem piedade. Não me importei: a Manela merece. A urze apresentava-se vestida de Outono, pontuada de pequenas bolinhas rosadas, em vez das vigorosas florinhas lilases do Verão. Lembrei-me logo do Torga. Lembrei-me da força agreste da urze, da sua humildade em vingar na aspereza, na dureza de um côncavo de rocha, numa rasa de terra.

Um vento sem fim fustigou as encostas da noite. A tempestade abateu-se sobre a casa, gotejando, escorrendo rios de chuva, uivando, bramindo. As noites assim fustigam-me a mente durante o sono, com fantasmas e gente perdida que não tem mais por onde andar. Apesar disso, pensei em como estava protegida em casa – sanctuarium. No dia seguinte, tinha-se instalado a escuridão, a hora a mudar, a cor do céu… o último dia de Outubro preparando a passadeira de angústias para a entrada triunfal de Novembro: sombrio, frio e silencioso, como o pranto das arcadas do violoncelo.

O início do mês trouxe os dias curtos, mas também uma pequena luz bruxuleante veio dar um pouco de vida ao jardim. E ao cemitério. Os mortos falam mais alto do que nunca, nestes dias. E a nossa mente começa a mergulhar num imenso vazio d’Inverno. Caiu o primeiro nevão na Serra da Estrela. Novembro não nos dá apenas a companhia dos mortos à mesa. Dá-nos também o frio, sem dó, apelo ou redenção. É o esforço do Outono que se esvai em direcção ao Inverno certo e indefetível. Uma luz fria, quási d’Inverno, acende-se a meio do caminho e apaga-se no regresso a casa. O cansaço toma conta de mim, envolto no sopro gélido de Novembro.

Andamos sempre a correr, não damos voz à meditação. Andamos a correr, como doudos, até à exaustão. Vamos aquecendo a casa e a alma, de lareira e esperança acesas.

Ontem, a minha amiga ofereceu-me uma pequena moldura, decorada com delicados pedaços de cortiça, com um verso do Torga, que comprou de lembrança na vila de Marvão; diz assim: “olhar longe… deixar a alma, serena, voar feliz…”. E entre Torga e a urze, entre Sísifo e a força da amizade é possível acreditar: “Recomeça…/ Se puderes/ […]” (1977).

Cada vez acredito menos em coincidências.

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