Cultura, Literatura e Filosofia

O TODO E A PARTE

Regina Sardoeira

A humanidade é um todo e a palavra que a designa ,”humanidade”, é um substantivo colectivo. Logo, tudo aquilo que afecta o todo, afecta a parte: ou seja, o indivíduo. Nenhum indivíduo, por isso, pode eximir-se à responsabilidade de contribuir, positiva ou negativamente, para a exaltação ou prejuízo do colectivo a que pertence. Ninguém pode dizer, em consciência, que o homem decaiu ou se elevou sem atribuir a si mesmo uma quota parte de responsabilidade, em ambas as situações. Se escrevo: “a humanidade decaiu” é porque vou observando os sinais. Os rios estão poluídos? Provavelmente, um dia, eu própria contribuí para tal. O ar está saturado de gases poluentes? Sim, eu conduzo um carro a gasolina. O lixo acumula-se em lixeiras e aterros? Sim, eu também levo para os contentores os meus próprios desperdícios e, sim, decerto nem sempre fiz reciclagem de materiais. Poderia prosseguir. Mas creio ter ilustrado o tema: quando falo de “humanidade” incluo-me, como não poderia deixar de ser. E quando escrevo sobre temas actuais, assumindo uma posição relativamente aos danos que o homem tem feito à sua volta, eu estou lá, como todos.

Convém esclarecer este ponto.
Não tenho uma visão negativa da humanidade e também não creio que as variações climáticas, tempestades, furacões, erupções de vulcões, terramotos e tudo aquilo que é usual considerarmos catástrofes decorram apenas da acção humana: creio que assim sendo, estaríamos a dar-nos demasiada importância. Sem dúvida, temos a nossa quota-parte de responsabilidade e não será necessário referir ou mascarar evidências. Somos uma espécie desequilibrada, enquanto tal, ignoramos o nosso lugar, não respeitamos a real condição que nos constitui, tendemos para excessos e, aos poucos, vamos- nos desfigurando. Não é somente o planeta que vai sofrendo os abusos humanos, tantas estradas, prédios, praças e mercados, fumos de mil origens, lixo inextinguível, mas também a sociedade essa forma de gregarismo criada por nós, para nosso benefício (supunha-se) e afinal causa de tantos e tão profundos males.

A história oficial da evolução do homem (porque pode haver uma outra, obscura) sustenta que somos primatas e logo animais sociais. Por essa razão, temos necessidade de viver em conjunto, agrupados segundo vínculos de várias ordens. Se os demais primatas encontram, naturalmente, nos seus habitats específicos, o modo adequado de partilhar o espaço e constituir grupos, o homem não se deteve na sua natural especificidade e será extremamente difícil descobrir qual seria ela. Somos originários da selva africana? Do sudoeste asiático? Da Escandinávia? Pertencemos ao rigor equatorial, aos extremos gelados da Antártida, ao deserto, aos oásis? Haverá um habitat primordial dos humanos, seguido de um êxodo para todos os lugares possíveis? Ou somos tão originais que irrompemos aqui, ali e além, sempre o mesmo animal, primata e mamífero, mais semelhante um ao outro que distinto?

Não creio que haja respostas únicas e irrefutáveis para estas questões e talvez sejamos, nós, humanos, uma curiosa excentricidade da natureza. O certo é que fomos criando, ao longo dos milénios que a história consegue contar (a oficial, porque nada sabemos da outra), vários povos e nações e civilizações e culturas, quer diferentes entre si, se atentarmos nos pormenores, quer muito semelhantes, se acedermos à generalização. Falamos línguas diferentes? É verdade. E contudo há um tronco comum a unir os diferentes padrões linguísticos e certas palavras existem, idênticas, em todas as línguas. Temos configurações físicas diversas, a tal ponto que puderam ser descritas e observadas raças cujos traços e estrutura corporal o comprovam iniludivelmente? É certo, há diferenças de vulto entre os humanos, tal como noutras espécies: mas nem por isso perdemos o traço comum que faz de nós todos aquilo que somos – humanos.

A sociedade humana é, contudo, uma espécie de perversão relativamente à natureza. Decerto, nos primórdios, o homem vivia próximo do seu habitat, em harmonia com os outros seres e o que o rodeava bastava-lhe, enquanto usufruto e subsistência. Porém, aos poucos, esse núcleo deixou de ser suficiente; e foi-se desagregando a harmonia original na luta por mais espaço, mais território, outros mundos, outras cores, outras paisagens. Desde então e até ao dia de hoje, nunca mais o homem teve um local fixo para se situar e viver: e foi devastando, destruindo, transformando. Não satisfeito com semelhante demanda, vislumbrou a possibilidade de sobrepor-se, aqui e ali, a outros homens, submeteu-os, escravizou-os, fez-se senhor, rei, déspota. Deveria ter sido assim ou, pelo contrário, poderiam todos os homens existentes coabitar pacificamente, de acordo com as suas necessidades?
Também não teremos resposta para esta pergunta, vivemos aprisionados neste modelo de existência, cujas regras, de tão variadas e muitas vezes confusas, nos paralisam ou inibem grandemente a nossa capacidade de acção.
Por essa razão, vivemos uma era de crise profunda e connosco arrastamos para o fundo as outras espécies, e os rios, os mares, as florestas. Somos um “animal crísico”, “sapiens/demens” (Edgar Morin, O paradigma perdido) e não há uma forma eficaz de resolver estas antíteses e restaurar a harmonia.

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