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Cultura, Literatura e Filosofia

A ESTAÇÃO DE MARIA VELHO DA COSTA

João Rebocho        

Disse-nos Maria Velho da Costa, apregoando a convicção de que a língua de Camões está viva, que num dia qualquer em que procurava na estação de Sta. Apolónia o respetivo lugar para entrar no comboio que, como todos, tardam em chegar, interrompeu um popular pedindo-lhe a sua indicação, naturalmente, para a margem correta, e ouviu “Se houver de vir há de haver de vir vindo ali naquela”. Poderia enfim desenvolver-se muita coisa acerca da carga poética existente na língua de Pessoa, mas determinados arranjos de letras confluem, por vezes, uma petrificação que suspende o leitor ou o ouvinte empurrando-os para um tamanho e exato esvaziamento linguístico apenas salvo por um menear da cabeça e um “enfim” desprotegido de aspas. É curiosa, ainda, a ideia de que os belíssimos autores desta gramática tantas obras escreveram em sistemas diferentes; refira-se três: Camões dedicou-se, em razoável quantidade, a obras em castelhano, Padre António Vieira teve uma passagem prolongada no Brasil, cerca de 20 anos, vivendo também 8 anos em Roma, e Pessoa, pertencendo ao conhecimento geral os seus 17 anos longe de Portugal, na África do Sul, tem um considerável número de textos em língua inglesa. A confusão que se torna estudo acerca daquilo que, quer por motivos da relação entre espaço-tempo, quer por razões artísticas, é ou não é português, não se sabendo, na sua essência, o que é transportar esse mesmo registo, torna-se, agora, o principal objeto deste brevíssimo texto.

Analisemos o interessantíssimo caso, diga-se de passagem, do Cinema Português. Os numerosos levantamentos teóricos das Ciências Sociais e Humanas em torno das propriedades do cinema nacional parecem reconhecer e partilhar o mesmo ponto de união: vários momentos na história do cinema em Portugal. A sua introdução realizou-se em junho de 1896, um ano depois de A chegada do comboio a Lyon, dos irmãos Lumière, e personificou-se no britânico Edwin Rousby. Aurélio Paz dos Reis constitui-se na contradição e filma, usando um aparelho semelhante ao dos Lumière, a Saída do pessoal operário da Fábrica Confiança destacando a ruralidade no espaço urbano através da presença de um arado dos bois coexistindo com novas tendências no vestuário da aristocracia. Os filmes com motivos portugueses, configuram um novo período na história do cinema nacional e é por Henry Short que os espectadores se aproximam das salas e das paisagens portuguesas projetadas. Consagrou-se a ideia de que o cinema é um objeto da modernidade, um produto cuja evolução fica comprometida quando o contexto social, político e económico não é favorável, e o seu resultado verifica-se na efemeridade das primeiras produtoras portuguesas, como a Portugália Film (1909-1912) e a Caldevilla Film (1919-1924). As primeiras longas metragens de ficção são realizadas, em grande número, por cineastas estrangeiros e interessam-se pela procura e pela conciliação da literatura e do teatro com o cinema, vejamos As pupilas do senhor reitor (1923) de Maurice Mariaud inspirado na obra de Júlio Dinis e Os Lobos (1923) pelo italiano Rino Lupo adaptando a peça teatral de Francisco Lage e João Corréa d´Oliveira Os Lobos: Tragédia Rústica em Três Actos (1920). A pertinência relembra agora o objeto principal deste texto: o que é ou não é português? Qual a nacionalidade de um cinema se ele próprio tem, ao mesmo tempo, tantas nacionalidades? Se ele é, em simultâneo, uma coisa e outra, um lado humano, de “não-ilusão” e o neorrealismo italiano e a montagem soviética, qual será a razão do cultivo ao Cinema-Pátria? Podemos afirmar, é certo, que o Cinema Português, nas suas diversas particularidades, fecha-se sobre si mesmo na segunda metade do século XX, com o cinema de autor, mais exclusivo, detalhado, incorporando um caráter autorreflexivo opondo-se às massas e ao seu capitalismo inerente. Este desfasamento nas relações existentes no espaço de análise cinematográfico é fruto de uma falência crónica de apoios, financiamentos e responsabilidade política portuguesa à indústria e à formação de realizadores. A conclusão que retiramos do exemplo da sétima arte, determina-se pelas contradições internas que possui: é nacional e internacional ao mesmo tempo, humano e ilusório na senda de tentar retratar uma nação e documental porque por detrás de cada olho, de cada objetiva, está sempre uma cultura, semeando-se, sem se saber, outras culturas também.

Interessa recuperar a expressão poética no relato de Maria Velho da Costa e movê-la para a contradição na cinematografia portuguesa. Situemo-nos numa estação, num espaço de análise social onde se detetam contrastes em vários níveis, como aqueles referidos, embora com forças diferentes, no filme Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança. Uma grande classe movimenta-se em busca da linha que sirva o seu destino. O destino não é encontrado e a classe fixa-se, sem nunca se tornar imóvel. Se a coragem é, ainda, uma evidência histórica portuguesa, suponhamos que nesta estação, esquecendo todas as insignificâncias que poderão embaraçar a construção que aqui se pretende criar, só se atravessa um comboio, designado, ainda, rapidíssimo meio de criação cultural. Não tem tempo nem espaço exato e a sua exatidão é estritamente pontuada pelos seus maquinistas ou, chamemos-lhes pelo cargo e privilégio que ocupam, senhores transformadores culturais, que só agem em conformidade com as suas vontades. A grande classe interroga-se, discute e divide-se pelas várias linhas da estação achando que um destino comum, seja ele a desilusão ou a vitória, não seria útil. Nesta contradição, o leitor compreenderá, caso permaneça viva a interessantíssima história de Maria Velho da Costa, que faltará uma personagem, ontologicamente poética, sensata, de tão fácil aproximação e de tão profunda história. Colocar-se-á a hipótese dessa personagem, se surgir nesta estação, ser um antigo senhor de transformação cultural, um estudioso que tem como objeto o universo das linhas ferroviárias e as leis que as constituem ou, simplesmente, pode ser um velho passageiro destes comboios. Ouve-se qualquer coisa na estação. O som vai crescendo, solta ondas de vibração pela calçada e não aparece nenhuma personagem poética e sensata. Avoluma-se o som e aparece na entrada da estação uma nova grande classe, mais jovem do que a primeira e que discute sobre como almejar o mesmo destino. O comboio tarda em surgir.

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