Soni Esteves
Não há muito tempo decidimos fazer a limpeza de uns terrenos a que, por brincadeira, chamamos a nossa quinta, como que a dar importância maior àquele pedaço de chão em volta de uma casa que já teve melhores dias. Há hoje um estrago natural nas paredes, um frio que nasce das ausências, como se as casas tivessem uma espécie de alma quando são o lar de alguém.
Abro a porta, devagar, e sei que o corredor me parecerá mais pequeno, o ar mais frio, e as paredes tristes com o abandono escrito nelas. Afasto as teias de aranha, limpo o pó, varro o chão, abro as janelas e deixo o sol entrar, mas não consigo trazer o calor de quando alguém ali morava.
Volto-me então para o exterior. Um tímido sol experimenta tingir de sombras aquela terra que, numa carência ditada por um pousio imposto, se abre em rasgos fecundos a cada primavera. Terão nome próprio as ervas que crescem sem seleção de mão humana, eu sei, mas que importa, são daninhas, e parecem querer rivalizar com as árvores em força e tamanho.
Das árvores que ali vivem sei os nomes, a cor e o saber dos frutos, mesmo que muitos dos que por ali continuam a medrar sejam agora repasto de pássaros, como os figos. De vida passageira, raramente os apanhamos. Ou chegamos cedo e os temos verdes, grandes, como que inchados de orgulho, ou então é tarde demais e vemo-los moles, esborrachados, o chão pejado deles, e os cimeiros, tão altos, bicados da passarada. Há também uma macieira pequenina onde crescem daquelas maçãs que os antigos colocavam nas caves, por detrás da porta, por ser lugar fresco e escuro, capaz de lhes garantir pureza e frescura até ao Natal. Mais acima, parecendo negar-se ao repouso silencioso da restante paisagem, dois diospireiros exibem ramos fartos.
O dia não está ainda no fim, mas nós já ansiamos por um banho e descanso. O terreno, após tantas horas de intensa faina, continua longe daquilo que foi no tempo em que a senhora Alice, dona de uma ciência muito sua, preenchia cada pedaço daqueles socalcos. Lembro que, mesmo em frente à porta da cozinha, ela costumava plantar uns tomateiros que estendiam as hastes por uns paus que, meticulosamente, enterrava junto a cada caule. Um dia, preparando-se a minha mãe para colher alguns tomates já maduros, ouvi o meu pai dizer “oh, deixa-os estar, gosto tanto de os ver aí!”. E era mesmo bonito, quando aqueles caules se enchiam de frutos vermelhos, que eu gostava de trincar abertos em gomos, temperados com umas pedrinhas de sal. Nesse tempo, por esta altura, já o socalco de baixo estaria coberto de couve galega pronta a engordar para nos oferecer os melhores troços na ceia de Natal.
Olho em volta, uma vez mais, como se procurasse uma prova do nosso esforço e rio das tesouradas torpes que demos nas árvores e na velha latada, cuja generosidade dos seus cachos dourados, continua a surpreender-me. E, enquanto preparo, sem sucesso, os montículos de ramos cortados e ervas arrancadas, para os fazer arder, dizem-me: “deixa a fogueira, está tudo verde, não vai arder, fica a matéria a decompor-se, logo mais havemos de voltar pelas tangerinas e pelas laranjas”. E não posso deixar de rir, imaginando que se a senhora Alice nos pudesse observar, talvez dissesse: “tanto estudo, tanto estudo, e nem uma fogueira de jeito conseguem fazer”.