João Rebocho
PROJETO: A MEMÓRIA, TAMBÉM.
A minha memória sempre foi a memória do Outro. Diria até que assumo todas as responsabilidades quando sou mais o Outro em vez de mim, porque em mim existe sentimentalmente tudo menos tudo aquilo que merecia existir. Agrada-me a transformação perpétua das coisas, na medida em que a coisa-em-si tem em-si outra coisa qualquer e é isso que a transforma. Um bom exemplo para esta reflexão são as histórias do meu avô quando em finais da década de 1960 emigrou para Nuremberga, na antiga República Federal da Alemanha. O meu avô nasceu no Alentejo, cresceu a trabalhar a terra e a tratar do gado. Não sei o que pensava ao longo desses tempos, mas creio que não se excedia no esforço, a vontade era mole depois do dia servil e a aprendizagem sem tempo nem lugar nos ambientes solarengos e excessivamente verdes. Quando abandonou os campos em direção à cidade já levava a minha avó, filha do seu antigo patrão – caso curioso, diga-se de passagem, que tomará as palavras que precisar noutra ocasião, certamente. Em-si transportava o arado, a ciência de que são senhores os homens de rosto queimado sôfregos da terra, passando a ter nos braços, desta vez, a força de um operário metalúrgico. Aqui, evidencia-se também o meu entusiasmo pelo estudo da finíssima película entre o passado e o presente com base na alteridade entre o ouvinte, neste caso eu, e o operário metalúrgico sabendo apenas a única língua que tem no pensamento, o meu avô. Que palavras podia um operário ter em pleno Estado Novo quando partilhava um espaço com homens e mulheres inimigos da sua própria natureza? Arrisco-me a responder: as palavras do seu nome, os nomes das árvores e dos instrumentos de trabalho que não possuía – tudo junto! A minha avó nunca desconfiou da sua intenção – originada pela proposta de emprego que recebera na fábrica, sediada nos subúrbios de Lisboa. Descobriu na véspera da viagem; estaria o meu avô, muito serenamente, a transferir o seu guarda-roupa para a mala que comprara na feira da ladra, preparando uma margem para os aborrecidos documentos de título de identificação, no momento em que aconteceu o inevitável. Julgo não ter existido qualquer discussão, demonstrando uma interessante cumplicidade ou uma omissão da verdade nesta parte da história – encontro-me alheio a fundamentar qualquer uma das opções anteriores. Suponho simplesmente que a hipótese de algum tempo depois, se até lá tudo corresse bem, a minha avó despedir-se de Lisboa e juntar-se ao meu avô em Nuremberga, como se veio a confirmar, certamente tranquilizou-a.
O comboio partiu de Santa Apolónia e um grupo de trabalhadores portugueses refastelou-se numa das partituras da carruagem em direção ao país mais alfabetizado desde o final do século XIX. Creio que o plano histórico da época não seria conhecido por este grupo de trabalhadores – ilação fácil de retirar. Mas, contou-me o meu avô que embora não conhecesse grande parte dos homens que desejavam o mesmo destino apressadamente se organizaram e combinaram uma forma de se inteirarem sobre a terra que pretendiam almejar. Em cada paragem efetuada entravam ingleses, espanhóis e, claro, alemães. O método estabelecido pelos trabalhadores que detinham apenas o seu nome e o nome das árvores no conhecimento, ou pelo menos era assim que se queriam os trabalhadores no fadário onde viviam, parece-me surpreendente e revelador de uma impressionante coragem coletiva. Distribuíram-se baralhos de cartas pelos grupos formados ao longo da carruagem e, muito animadamente, convidaram os ingleses, espanhóis e alemães para pequenos torneios de equipas com prémios para os vencedores. Questiono-me, nunca resistindo ao fascínio pela irreverência e inteligência presentes nesta ideia, o modo atrapalhado como conseguiram explicar as regras dos jogos, ou se existiram sequer leis reguladoras; o cuidado em como perguntaram notícias sobre a República Federal da Alemanha nos indivíduos mais bem-parecidos e, ainda, como conseguiram convencê-los de que não eram meia dúzia de homens mal-intencionados – maganos, em bom alentejano! Certo é que no final, ou algures na viagem em que os trabalhadores pressentiram a conquista e largaram o lado sóbrio bebendo da mesma garrafa dos estrangeiros, o resultado foi positivo, traduzindo-se na aprendizagem de algumas expressões alemãs muito úteis para pedirem as primeiras refeições pagas com o dinheiro que arrecadaram nos torneios de cartas, onde pela experiência, pelo domínio das regras e da língua venceram facilmente. Quando o comboio desembocou no centro da cidade, um funcionário da empresa que iriam representar esperava-os e, volto novamente a supor, todos os trabalhadores recuperaram em poucos segundos a lucidez. Cobriram o corpo com todos os pelos e peles inventadas para agasalhar e começaram um novo ciclo nas suas vidas. Se há algo que gostaria de ressaltar nesta história é a coragem, a dilatante coragem dos trabalhadores. Se me é permitido corrigir ou acrescentar outra possibilidade, diria: coragem e instinto de sobrevivência. A forte carga que esta dualidade pode apregoar em nada se desvirtua da primeira ideia que aqui apresentei. Falei-vos num conjunto de forças transformadoras como motor de mudança e um bom retrato para sustentar essa afirmação constitui-se na luta que cada um de nós exerce na leitura de um livro. Acontece-nos com frequência quando escolhemos determinada obra a sua leitura funcionar exaustivamente consoante dois parâmetros: a luta pelo conhecimento e a luta contra a ignorância. Encontramo-nos num primeiro momento como ignorantes perante um texto, restando-nos o empenho e a paciência como formas de superação. O prolongamento do seu estudo constrói-nos mediante tudo aquilo que a obra nos pode proporcionar. Assim, um livro pode ser ao mesmo tempo a consciência da ignorância e a busca do conhecimento. Transporto estas pequenas operações para o grosso contexto social em que o meu avô trabalhou. Optando por usar o mesmo exemplo do livro, vejamos a luta exercida por alguém que aos trinta e poucos anos, com a quarta classe, viaja para a Alemanha e os guias de instrução dos meios de produção estão inteiramente escritos em alemão. Qual é a língua que pertence a um operário? Arrisco-me outra vez a responder: o operário aprende a língua que lhe permita a luta contra o explorador e que lhe sirva a libertação, seja a língua a sua ou a do dominador. A minha avó, poucos anos depois, partiu de Lisboa para a RFA e integrou uma empresa de produção de doces e chocolates. Os dois lutaram com as forças que cada um tinha e conseguiram uma casa na periferia, alcançando também a intimidade. O meu pai nasceu em Nuremberga e antes de entrar para a escola motivou o regresso a Portugal dos meus avós. A minha memória é esta: eu e o Outro.
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