Regina Sardoeira
Olho um crepúsculo laranja, neste último dia de Novembro. Sinto, no ar frio, uma beleza pungente, prólogo de um tempo em que a vida se quedará, suspensa perante os olhos humanos, mas preparando, no recato do húmus, a apoteose primaveril.
A vida, qualquer que ela seja, tem este sabor a antítese, já que um dos extremos contém sempre, envolvida, a semente que o liga ao outro.
E no entanto o homem parece esquecer esta necessidade de refúgio interior, semelhante a um adormecimento, condição privilegiada de novas aventuras. Aventuras que ocorrem, espontaneamente, sem pressa, basta manter o espaço aberto e disponível – espaço íntimo, notemos – para que a transformação aconteça.
Lembro que hoje é o aniversário da morte de Fernando Pessoa, esse que veio a ser – porque já o era desde sempre – o maior poeta da língua portuguesa. Nenhum, como ele, conseguiu tornar sensíveis as suas diferentes e múltiplas formas de ser e fê-lo, magistralmente, no corpo e na poesia, desdobrando-se. Não fingiu que tinha uma personalidade coesa e imutável, como fazem todos os outros, na inútil ilusão de que são unos e coesos em todos os momentos e actos da vida. Fernando Pessoa soube que o seu destino era ser dono de uma multiplicidade de pessoas e que, dentro de si, elas clamavam por erguer-se e dar testemunho. Então, fez-lhes a vontade, traçou a cada uma delas o perfil físico e psicológico, deu-lhes um nome, uma data de nascimento e um local, uma profissão. E fez deles poetas, tal como ele era.
Fernando Pessoa deambulou entre mundos, os dos seus “outros” e também as inomeáveis vastidões onde o seu génio descobriu formas e sons, ritmos e luzes para povoar de magia o seu universo. Desencantado, dizem, melancólico, disposto, enquanto homem, a afogar mágoas e solidão nos cálices de aguardente, nessa existência trivial de funcionário e cidadão de uma Lisboa ainda marcada por um isolamento, avesso ao cosmopolitismo. Mas pleno de uma luxuriante vitalidade capaz de vituperar e agredir, de compor elegias, de igualar os deuses ou cantar o espírito popular do seu tempo.
Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,
Não estou pensando em nada, e que bom!
Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida…
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada…
(Álvaro de Campos)
E da simples verificação do nada que é a substância do seu pensar, no momento, Álvaro de Campos fez poesia. Nesse nihilismo activo reconhecemos ainda Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, que deste modo “cantou” a natureza:
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar…
Ricardo Reis , o helenista, imprime às suas odes a contenção poética que também corria nas veias poéticas de Fernando Pessoa
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Outros eus brilharam na confluência do eu deste poeta que, devolvido à terra no último dia de Novembro, perdura, sem dúvida, para além do arcaboiço corpóreo, em sendas invioladas, cujo rumor perpassa, mesmo sem interpretação erudita, nos poemas que nos deixou.
Perde-se o clarão laranja do crepúsculo, invadido pela sombra da noite, e nela refulgem outras luzes, cativas quando o sol reinava, despertas, enfim, na antítese que lhes deu o ser.