Regina Sardoeira
Vou escrever sobre o Natal.
Vejo, há demasiado tempo, o apelo contínuo às compras, vindo da publicidade e de sectores ligados a múltiplos comércios. Ainda estávamos no mês de Outubro e as fanfarras do consumo já troavam, na antecipação dos festejos e na necessidade de começar a percorrer as lojas, reservando isto e aquilo, antes que fosse tarde.
Detive-me a reflectir sobre o tema. Pensei na conotação cristã da festa e na celebração do nascimento daquele que foi , pelas circunstâncias da sua vida e morte, o responsável por uma nova era histórica (ainda que não o tenha feito directamente: “o meu reino não é deste mundo”, pregava ele.), o fundador de uma religião, cuja base são os Evangelhos: únicos documentos acessíveis para quem sinta necessidade de compreender a acção deste homem incomum que é conhecido pelo nome de Jesus. Portanto, se ele nasceu, na noite de 24 para 25 de Dezembro, há 2021 anos, isso significa que a criação da festa, chamada Natal, ou Natividade, ou nascimento, visa relembrar e comemorar esse acontecimento ancestral.
Parece simples: uma festa de aniversário, somente. Porém, ao longo do tempo , o aniversariante foi totalmente esquecido, ninguém parece associar, em palavras ou em actos, os dois dias de comemoração ao nascimento de Jesus.
Esta circunstância, podendo ser observada em qualquer lugar e constituindo a norma do tempo actual é, no entanto, bastante estranha: como é possível celebrar o aniversário de alguém e ignorá-lo totalmente? Não o convidar, sequer, para estar presente na festa do seu aniversário? Além disso, ninguém lhe oferece uma prenda,como é comum, antes as distribuem entre si, na festa, evocando e trazendo à cena uma personagem um pouco ridícula e artificial, pois aparece mascarado, que será responsável por todos esses presentes.
O pior é que todos sabem (se exceptuarmos algumas crianças) que esse velho de barbas brancas e fato vermelho não existe realmente , é produto de um truque comercial através do qual se promove o consumo. Apesar de o saberem, fazem dele o centro do Natal, mostram-no às crianças, incutem-lhes essa crença, dizem que ele chegará num trenó, puxado por renas, sulcando os ares e entrando pela chaminé com os presentes! O mais extraordinário é que as crianças acreditam, durante alguns anos, pelo menos, até que um gesto incauto dos verdadeiros responsáveis pelas prendas os denuncia ou a lógica e o conhecimento lhes mostram outras explicações.
De qualquer modo, é deveras aberrante ocupar a imaginação das crianças com um símbolo falso de uma efeméride que em nada se revê no velho, vestido de vermelho, no trenó alado e nas prendas atiradas pela chaminé. Além disso, note-se, Jesus nasceu de noite numa gruta tornada estábulo, nasceu só com o pai e a mãe por perto – reza a tradição – a sua cama foi uma manjedoura revestida com palha e, se recebeu presentes, eles vieram de pastores que por ali pernoitavam. Com mais ou menos detalhes, é esta a história que chegou ao nosso tempo acerca do nascimento de Jesus. Pode ter sido assim, ou não: de qualquer modo e para todos os efeitos é por esta razão que existe Natal.
É difícil explicar a uma criança que um homem nasceu há muito tempo, numa gruta, rodeado de animais, sozinho entre o pai e a mãe, que esse bebé cresceu e realizou actos importantes que fizeram dele um exemplo e um líder, capaz de influenciar todo o mundo? Que os festejos do Natal têm como centro esse acontecimento e todos os valores daí decorrentes, incluindo a reunião familiar, a solidariedade, a luta por um mundo melhor, a defesa da igualdade, a paz entre os homens? Não me parece. Mais estranho é incutirem-lhes a ideia de que um homem velho e gordo , vestido de vermelho, descerá pela chaminé para satisfazer-lhes desejos nascidos da publicidade. Mais difícil me parece explicar-lhes como pode um velho gordo, correr todo o mundo numa noite e, pior ainda, descer por imensas chaminés.
Claro que um bebé recém-nascido, embrulhado em panos simples, deitado numa manjedoura, rodeado de animais e visitado por pastores é um quadro obscuro, decerto muito pouco apelativo ao comércio e ao consumo. Decerto um homem vestido de vermelho ,com um trenó, renas e guizos, sulcando os ares carregado de prendass tem mais poder enquanto símbolo festivo e publicitário do que uma gruta escura e fria iluminada por uma estrela. De um ponto de vista consumista eu entendo este favoritismo e também o deslumbre das crianças, encantadas com as luzes e o anúncio das guloseimas e das prendas: mas tudo isso pode ter muitos nomes, mas não é o Natal.
Por essa razão inventem outro nome para esta festividade oriunda da publicidade , e deixem pontificar a simplicidade da gruta de Belém. Ao mesmo tempo, percebo que esta dicotomia – Menino Jesus/Pai Natal – nunca será levada em conta. O Natal continuará a ser esta corrida desenfreada às compras, esta necessidade de reunir a família e os amigos para, simplesmente, comer, beber e dar prendas. Apenas isso, sem celebração da efeméride que sustenta a nossa cultura , sem evocação do recém-nascido na gruta, sem sortilégio e sem sombra de mistério. A evidência do Pai Natal ( às vezes, palpável, porque o simulacro aparece nas ruas) dispensa pais e educadores de explicarem o mistério subjacente à festa que talvez eles próprios desconheçam ou muito pouco lhes interesse.
Daí a inutilidade absoluta desta crónica, escrita para evocar o Natal e afinal mergulhada em paradoxo.