Tatiana A. Santos
Desde o atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001 que o tema do extremismo religioso e do terrorismo se impôs nas nossas vidas e no nosso dia-a-dia. Isto, per se, justifica a necessidade de compreender, mais a fundo, fenómenos como a revolução de 1979 no Irão ou os eventos da chamada “Primavera árabe” de 2010-2011. Hoje sabemos que, quando o enquadramento governamental de um terrorismo apocalíptico radical não é bem compreendido, acabamos por dar passos que agravam as situações, em vez de as facilitarem (Flannery 2016, 108). É, por isso, premente a investigação relativa aos fenómenos religiosos presentes na acção política, bem como o estudo aprofundado do pensamento apocalíptico, já que este pode ser uma força de mudança social pacífica, mas, quando unido a um conjunto particular de crenças, pode manifestar-se também através de homicídio, terrorismo ou genocídio, como tem vindo a acontecer um pouco por todo o Mundo (Flannery 2016, 10). Na Europa, Canadá, Austrália e Nova Zelândia há uma tendência para se discutir o fenómeno religioso como sendo uma série de “crenças e práticas” separadas dos interesses políticos e materiais (Flannery et al. 2013 apud Flannery 2016, 60). No entanto, isto dificulta imenso a compreensão dos sistemas teocráticos, as democracias islâmicas ou – como no caso do Irão – a existência de uma República Islâmica (Flannery et al. 2013 apud Flannery 2016, 60).
A ideia de “Apocalipse” derivou de narrativas mitológicas da criação na antiga Pérsia que foram, posteriormente, transmitidas ao judaísmo e cristianismo primitivos (Flannery 2016, 18). Trata-se da palavra grega para revelação, mas o seu uso mais “recente” deriva da utilização no título do último livro da Bíblia: o Livro do Apocalipse (Collins 1998, XIII) e o antigo uso da palavra apokalypsis mostra que não se trata de um construto moderno (Collins 2016, 4). Na especulação apocalíptica, a História tem um fim que está predestinado e revelado, estando o foco nos eleitos enquanto centro do universo (DiTommaso 2020, 317). Collins distingue vários tipos de “Apocalipse” e elabora a possibilidade deste género ter a sua matriz nas narrativas Babilónicas, junto com influências Persas e Helénicas (Collins 2016, 32). O apocalipticismo persa ou iraniano apresenta muitos traços semelhantes ao da tradição judaico-cristã, causando-nos – simultaneamente – um sentimento de familiaridade, mas também de estranheza devido ao seu contexto cultural diferente. A semelhança leva muitos académicos a pensar se todo o apocalipticismo ocidental poderá mesmo ter derivado do antigo Irão (Hultgard 1999, 39) já que a dualidade presente no pensamento e mitologia persa é claramente definida, sobretudo quando pensamos no duelo entre bem e mal – Ohrmazd e Ahreman – descrito na sua cosmogonia em que, apesar dos 9 mil anos de espera, se crê que o confronto final resulte numa batalha em que ambos se encontrarão (Hultgard 1999, 55).
Apesar de certos grupos variarem significativamente no seu contexto cultural, acabam por exibir características de um tipo de pensamento presente há milhares de anos, a que podemos, então, chamar “apocalipticismo” (Collins 1979, 3; Collins 2016, 13) e que pode originar cenários de paz ou de violência. DiTommaso (2020, 317) vê este “apocalipticismo” como o elemento que funciona enquanto DNA da apocalíptica, já Flannery afirma que estes grupos mais violentos podem ser categorizados dentro do quadro de “apocalipticismo radical” (2016, p. 1). Mas então, como enquadrar a história recente do Irão com este pensamento? Quando pensamos na política iraniana, pensamos num sistema que foi governado pela figura de um Xá durante cerca de 2.500 anos. No entanto, em 1950, Mohammad Mosaddegh tentou devolver a riqueza ao povo e dar início a uma forma mais secular de governo, não fosse ter sido deposto, 3 anos depois, com a ajuda dos americanos e ingleses. É nesta altura que sobe ao poder o ditador Reza Pahlavi. Pahlavi permanece durante os 26 anos em que implementou tortura, morte, medo e parcerias com os EUA e Reino Unido, até ter cancro, ser deposto e perder o poder para o Ayatollah Khomeini visto, por muitos, como um renovador para uma nova era islâmica (Cole 2002, 305). A sua revolução xiita, deu origem a uma teocracia: a nova República Islâmica do Irão (Kurzman, 2004 apud Flannery 2016, 95).
Em 1979, o deposto Pahlavi refugia-se nos EUA em regime de asilo político, para fazer quimioterapia e o povo iraniano manifesta-se pedindo a sua extradição, para que possa ser julgado e enforcado. É neste cenário que Khomeini – confiando na ideologia milenarista dos xiitas – se assume como sendo “O Imam”, demonizando os EUA, vistos como a figura do “Grande Satanás” (Amanat 2002, 17). Obviamente que o poder de Khomeini vem também da sua liderança carismática (Cole 2002, 310), mas convém lembrar que a crença profética e quase messiânica associada ao “Imam” reveste Kohmeini de um poder practicamente sobrenatural e de um misto de respeito e de medo que o dota de poderes absolutos. Se, no pensamento apocalíptico, o mal é essa força em permanente conflito com o seu oposto, é importante entendermos como se processa a dinâmica dentro e fora dos grupos, já que essa componente se manifesta também nas suas identidades e na relação entre o grupo dos escolhidos e o “Outro” (diTommaso 2020, 317). Para os seguidores de Khomeini, os americanos seriam esse “Outro”. Uma espécie de Anticristo.
Mas o mesmo se passa do lado americano, para quem o Islão seria a personificação do mal. Quando há um “eles”, é bem mais fácil haver um “nós”. E é este “nós” – o laço entre membros do mesmo grupo – que poderá ser a maior motivação que encontramos para justificar os actos de violência (Flannery, 2016, 68), já que a função desta especulação apocalíptica é a de validar a identidade de grupo, sobretudo de grupos que se consideram oprimidos e marginalizados (diTommaso 2020, 318). Isto aconteceu com os iranianos que viram a parceria entre Pahlavi e o Ocidente aumentar o já grande fosso entre o povo e os seus governantes e facilmente estas correntes apocalípticas de pensamento acabam por se refugiar no simbolismo dos seus livros sagrados – sejam eles o Livro do Apocalipse ou os avisos presentes no Qur’an e Hadith, através das palavras atribuídas ao Profeta (Amanat 2002, p. 6). Tanto é, que hoje se acredita que o 12.º Imam aguarda, ao lado de Deus, pela altura em que voltará para trazer um fim à História, com Jesus a seu lado (Kaplan 2019, 20).
Mas a verdade é a de que, ao longo da história norte americana, a expectativa apocalíptica também tem assumido múltiplas formas e alastrado num vasto espectro de ideias políticas (Boyer 2003, 140). Bush, por exemplo, não deixou de sublinhar isso no seu discurso sobre o “Estado da União” em 2002, ao afirmar que o Irão fazia parte do “eixo do mal” (Flannery 2016, 115). Ainda hoje, esta fabricação medieval de acusações e difamações mútua, circula entre os extremistas islâmicos radicais, que não representam a grande maioria do Islão, e na propaganda de membros racistas brancos de vários grupos de ódio cristãos, que não representam a maior parte do cristianismo (Flannery 2016, 47). Grande parte dos cerca de 1.7 biliões de muçulmanos por todo o Mundo, rejeita totalmente o terrorismo. De lembrar que o Qur’an proíbe o suicídio e a violência contra inocentes (Flannery 2016, 61). O problema pode estar, precisamente, na definição dos conceitos que separam inocente de infiel e nas suas múltiplas e subjectivas interpretações.
BIBLIOGRAFIA
Amanat, Abbas. “Apocalyptic Anxieties and Millennial Hopes in the Salvation Religions of the Middle East.” In Imagining the End: Visions of Apocalypse from the Ancient Middle East to Modern America, edited by Abbas Amanat and Magnus Thorkell Bernhardsson. London; New York: I. B. Tauris, 2002, pp. 1-20.
Boyer, Paul. “The Growth of Fundamentalist Apocalyptic in the United States.” In The Continuum History of Apocalypticism, edited by Bernard McGinn, John Joseph Collins and Stephen J. Stein. New York: Continuum, 2003, pp. 516-44.
Cole, Juan R. I. “Millennialism in Modern Iranian History.” In Imagining the End: Visions of Apocalypse from the Ancient Middle East to Modern America, edited by Abbas Amanat and Magnus Thorkell Bernhardsson. London; New York: I. B. Tauris, 2002, pp. 282-335.
Collins, John Joseph. The Apocalyptic Imagination: An Introduction to Jewish Apocalyptic Literature. 3rd ed. The Biblical Resource Series. Grand Rapids, Mich.: William B. Eerdmans, 2016, pp. 1-52.
_________________“Introduction to Volume 1” In The Encyclopedia of Apocalypticism, Volume 1: The Origins of Apocalypticism in Judaism and Christianity. 1998, pp: XIII – XVII
diTommaso, Lorenzo. “Apocalypticism in the Contemporary World.” In The Cambridge Companion to Apocalyptic Literature, edited by Colin McAllister, Cambridge: Cambridge University Press, 2020, pp. 316-44.
Flannery, Frances. Understanding Apocalyptic Terrorism: Countering the Radical Mindset. Abingdon, Oxon; New York, NY: Routledge, 2016.
Hultgard, Anders. “Persian Apocalypticism.” In The Encyclopedia of Apocalypticism, Vol 1, edited by John Joseph Collins. New York: Continuum, 1999, pp. 39-83.
Kaplan, Jeffrey. Apocalypse, Revolution and Terrorism: From the Sicari to the American Revolt against the Modern World. Political Violence. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2019, pp: 9-44.