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Cultura, Literatura e Filosofia

O REGRESSO À BARBÁRIE

Regina Sardoeira
Regressamos à barbárie e são inequívocos os sinais. Lembro, a propósito, o Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago. Quando o li, com alguma mágoa e raiva, confesso, pois nesse tempo, 1995, tinha uma outra fé na humanidade e uma outra esperança, senti que mergulhava num mundo absurdo, horrível, nauseabundo, e pude percepcionar, com todos os meus sentidos, os cenários de terror que me iam sendo apresentados. Afinal, não era exagerada a descrição realista de uma epidemia de cegueira onde um certo pais/mundo foi conduzido ao pior de si mesmo.
A propósito da sua obra diz Saramago:
“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.”
A cegueira começa num único homem, durante a sua rotina habitual. Quando está sentado no seu carro, num semáforo, este homem tem um ataque de cegueira, e é aí, com as pessoas que correm em seu socorro, que uma cadeia sucessiva de cegueira se forma… Uma cegueira, branca, como um mar de leite e jamais conhecida, alastra rapidamente em forma de epidemia. O governo decide agir, e as pessoas infectadas são colocadas  numa quarentena com recursos limitados que irá desvendar, aos poucos, as características primitivas do ser humano.
A força da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo governo e depressa o mundo se torna integralmente cego.  Apenas uma mulher, misteriosa e secretamente, manterá a sua visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam: poder, obediência, ganância, carinho, desejo, vergonha; dominadores, dominados, subjugadores e subjugados.
Nesta quarentena, esses sentimentos  irão desenvolver-se sob diversas formas: lutas entre grupos pela pouca comida disponibilizada, compaixão pelos doentes e os mais necessitados, como idosos ou crianças, embaraço por atitudes que antes nunca seriam cometidas, actos de violência e abuso sexual, mortes,…
Ao conseguir, finalmente, sair do antigo hospicio onde o governo os pudera em quarentena (devido a um fogo posto na camarata de um grupo dominante, que instalara ainda mais o desespero controlando a comida a troco de todos os bens dos restantes e serviços sexuais) ,  a mulher que vê depara-se com a ausência de guarda: “a cidade estava toda infectada”; cadáveres, lixo, detritos, todo o tipo de sujidade e imundicie se instalara pela cidade. Os cegos passaram a seguir os seus instintos animais, e sobreviviam como nómadas, instalando-se em lojas ou casas desconhecidas.
Saramago mostra, através desta obra intensiva e sofrida, as reacções do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos também a reflectir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da  personagem principal, a mulher do médico, que se depara ao longo da narrativa com situações inadmissíveis; mata para se preservar e aos demais, depara-se com a morte de maneiras bizarras, como cadáveres espalhados pelas ruas e incêndios; após a saída do hospício, ao entrar numa igreja, presencia um cenário em que todos os santos se encontram vendados: “se os céus não vêem, que ninguém veja”…
A obra acaba quando, subitamente, exactamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e rastos não se desvanecem.
Saramago afinal foi um profeta. Hoje vivemos uma epidemia, não de cegueira branca , vinda nunca se soube de onde, mas de outra ameaça invisível, escassamente compreendida, debilmente explicada, que ninguém esperava e que por isso apanhou todos desprevenidos. E é um espectáculo confrangedor observar a acomodação geral às máscaras, aos testes, às vacinas, mesmo na desconfiança de que máscaras, testes e vacinas e outras obrigações e restrições não resolverão, por si sós, coisa nenhuma.
O problema vai mais fundo do que esta aparência noticiada diariamente e, aos poucos, iremos descobrindo que estamos a ser submetidos a um teste complexo acerca da nossa humanidade.
Tudo se vai desconstruindo, aos poucos. Os valores atingiram elevados picos de desgaste, o homem já não respeita o outro homem na exacta medida em que não se respeita a si mesmo. O espectáculo humano é degradante, basta deter o olhar com alguma insistência em certos fenómenos para anteciparmos o fim de uma civilização.
Por esta razão, a hora é apropriada para reflectir. Será que a profecia de Saramago vai ser vivida até ao limite? Será que, aos poucos, o mundo dos homens se tornará um cenário de perfidias? Haverá, por aí, uma testemunha não infectada e logo imune, capaz de observar, sem que ninguém dê conta, o terror já instalado e em crescendo?
Prestemos atenção aos sinais porque, não há dúvida: estamos nitidamente de  regresso à barbárie.

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