Cultura, Literatura e Filosofia

ENTRE LUANDA E LISBOA

  Talvez precisasse de autorização para escrever sobre certos assuntos, nomeadamente os familiares. Talvez precisasse de ouvir toda a história, sem nenhuma exceção ou qualquer acrescento estranho. Quem sabe se dentro da história eu precisasse de estar para não me enganar no tempo e no lugar. No entanto, quando as palavras se soltam de bocas maternas e têm o sabor dos livros, se vestem de roupas velhas e levam as testas engrinaldadas, quando contam as histórias dos meus avós e lembram-se-me tantas vezes que até mil avós já tenho, nada mais poderei fazer do que ser eu a autorizá-las. Sinto que as melhores conversas acontecem na cozinha como se por um efeito de luz ou de silêncio as vozes soassem mais naturais e as paredes atentas. É evidente que os resgates à memória executados pela minha avó se agitam com uma única brisa, por isso refugiamo-nos na sala-de-estar, embriagada de objetos e de toda a espécie de coisas que, apregoando um transparente contínuo, servem de acessório. Depois, conta-me o momento em que o meu avô, pelo serviço militar, embarcou para Angola e abalou da metrópole, como alguém que não colhe de semear; e diz-me que ficou nos mesmos campos ceifando ao lado de outras mulheres, esperando o domingo de Páscoa para passear pelos jardins de Lisboa onde ouvira de uma vidente que também ela havia de atravessar as águas. Fala-me de Luanda e de Santa Comba como me fala sobre as mangas e as espigas de milho que se vendiam na Praça Maria da Fonte e dos longos “cachibombos”, nome que o meu avô chamava aos autocarros que atravessavam Mutamba. As noites merecem-lhe sempre uma interessante atenção: quentes, de cacimba constante e enquanto eram serenas cantava junto ao alpendre canções para embalar a minha mãe e os meus tios. Com as agitações armadas em Luanda as noites passaram para Santa Comba, uma província mais a sul, onde os meus avós viveram e trabalharam durante quatro anos, tratando do gado de um português, rico, de muitas posses e que, segundo o conjunto de homens e mulheres que para ele trabalhavam – e em segredo pela minha avó –, não era filho de boa gente e cravava diamantes nas canas de açúcar com destino à metrópole. A principal fonte de subsistência da maioria dos portugueses que habitavam em Santa Comba era o trabalho agrário, de sol a sol, com o gado a servir de alimentação e de felicidade quando gerava à mesa um grande número de refeições.

          Em 1976, os meus avós tornaram-se retornados, após mergulharem nas caóticas filas dos aeroportos, e a minha mãe – de nacionalidade angolana – apresentava no seu cartão de identificação um registo que, diga-se de passagem, pode ser um instrumento de alguma análise, lia-se nesse mesmo campo: ex-colónias portuguesas. O país da minha mãe tem tantos nomes e nome nenhum, ofereceram-lhe apenas um trânsito identitário, uma mão pintada de séculos violentos e uma proposta traumática de autorrepresentação. Angola era independente e Luuanda, finalmente, Luanda. Os meus avós regressaram a Lisboa e a minha autorização suspende-se aqui, com o rosto nostálgico das mil avós que tenho por, em tantas ocasiões, pensar na mulher que num alpendre cantava:

Ó Lua, Ó Luar,

Traz pão para o Zezinho se criar.

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