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Cultura, Literatura e Filosofia

O PERIGO DE COMBATER MONSTRUOSIDADES

«Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se olhares longamente para um abismo o abismo também olha para dentro de ti.» Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal
Regina Sardoeira
        Basear um texto nesta frase de Nietzsche parece comportar todos os riscos, parece desafiar toda a moral e todos os preconceitos; mas é essa exactamente a sugestão que nos envia o título da obra, é esse o convite que o filósofo nos faz, ao colocar-se para além do bem e do mal, lançando-nos o repto de o fazermos, de igual modo. De facto, há apenas duas maneiras de ler os filósofos e ambas se complementam necessariamente: em primeiro lugar, urge que lhes justifiquemos por inteiro o pensamento por mais bizarro, difícil ou contrário às nossas posições que ele nos pareça ser. Com esta atitude alargamos o nosso olhar, invertemo-lo, fazemo-lo abarcar novas dimensões, antes inexploradas, e, quando dermos conta, estaremos muito para além de nós próprios, em terrenos virgens que, de imediato, poderemos aglutinar ao nosso mundo interior. Com efeito, há vastidões igmotas, muito para além do que a nossa vista alcançou até hoje, e nem sequer é necessário sairmos do nosso canto do mundo para darmos conta delas. Quantas vezes o viajante compulsivo das cidades, dos países e dos continentes não passa de um coleccionador de retratos que fita, embevecido, após cada viagem mas dos quais  nada extrai que seja vivo e perene! Ao contrário, o viajante do espírito, o cavaleiro da mente, o desbravador de desertos interiores ao observar o comum, a uma outra luz, com uma nova perspectiva, desentranha, em si mesmo, por essa via, novos mundos que infinitamente o levam a transcender-se, mudando de face. Em segundo lugar, é essencial que lancemos sobre os pensamentos, que primeiro assimiláramos, o olhar verrumante da crítica. Pode ser que o nosso émulo, pois a ele havíamos aderido de todos o coração, tenha, afinal, sombras, desníveis, fragilidades no seu pensamento; pode ser, então, que necessitemos de fazer luz sobre esse terreno, agora nosso, e aplanar-lhe as agruras. De um modo ou de outro haverá, impreterivelmente, crescimento.
Combater monstruosidades é, de facto, uma tarefa perigosa por causa, exactamente, das armas que somos compelidos a utilizar no combate: é que elas têm que ser em tudo idênticas àquelas que esgrime o nosso adversário e, no acto de manuseá-las, hoje e amanhã, no esforço continuado de vencer a peleja, acabamos tão hábeis quanto ele e a curto prazo tão monstruosos quanto aquele que combatíamos.
      A monstruosidade, enquanto imagem literária, aponta quase sempre para uma conotação pejorativa fazendo com que tenhamos que transpor a fronteira da metáfora, onde tudo é permitido,  para nos colocarmos, à  revelia do próprio filósofo, que antes nos convidava a ficarmos para além  do bem e do mal, no plano ético, e logo valorativo. O monstro é, desse modo, o mau, o vilão, aquele que, ora nas proporções do corpo, ora nas nuances comportamentais, ofende o padrão, viola a norma, mergulha nos terrenos marginais do vício ou do crime. Eis o monstro!
      Aquele que classificámos como sendo monstruoso e com quem apesar disso queremos combater, bem depressa nos derrotará, a menos que consigamos, de tão bem o termos chegado a conhecer, desentranhar do arsenal das suas monstruosas proporções a fragilidade, a pequenez, o ponto crítico.
Combatemos num terreno perigoso, estamos a descer um declive, o abismo já nos espreita ao fundo da ravina; valerá a pena envolvermos a nossa vista, por mais tempo, nessas águas negras, fruto do vómito do monstro e permitir que ele nos fite, na sua rigidez encantatória e acabe por, fatalmente, nos sorver?
  Então, há que mudar de armas, não adianta continuar a esgrimir os punhais para que não temos ainda a necessária destreza – a menos que nos tornemos monstros! – e, em lugar de resvalarmos para o abismo, onde o monstro agita o seu veneno de torpeza, urge que nos viremos para a vereda por onde derrapámos  e comecemos a subi-la, trepando sobre a nossa cabeça e enfrentando de uma vez por todas os nossos medos.
Quem tem ouvidos para ouvir, oiça

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