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Saúde e Vida

ACERCA DA INCLUSIVIDADE DA PSICOLOGIA

Tatiana A. Santos

O modelo etno e eurocêntrico de terapia para caucasianos de classe média?
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Enquanto psicóloga com 15 anos de experiência clínica sigo, obviamente, um modelo de pensamento no qual me enquadro e que acredito ser o mais eficaz para acompanhar os meus pacientes. Trata-se do modelo Junguiano ou Analítico, contudo, qualquer que fosse o enquadramento (existencial, cognitivo-comportamental, psicanalítico ou outro), acredito que isso não mudaria muito a minha reflexão.
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Quanto mais interajo com outras culturas e formas de estar, mais percebo que os serviços de psicologia de que dispomos actualmente, não têm lugar para toda a gente. E não digo isto de ânimo leve. A psicologia que praticamos parece-me um modelo de intervenção criado por caucasianos de classe média e destinado a esse mesmo alvo. As questões existenciais para as quais os psicólogos estão preparados para dar resposta, são as dúvidas transversais a todos os elementos desse espectro. Isso reflecte bastante a sua origem e a sua própria estagnação. Quando falo de estagnação, não falo numa falta de avanço científico. Refiro-me ao facto de todos os avanços continuarem apenas a dizer respeito a problemas e terapias destinados a… isso mesmo, caucasianos de classe média.

Mas é vital entendermos que a forma como as várias culturas vêem a doença, nomeadamente a doença mental, difere. Diferindo também a sua abordagem à mesma. A noção de cura é polissémica e assume tantos sentidos, significados e visões quantas as culturas que a estudam. Não existe uma cura única (ao contrário do que alguns elementos da comunidade médica possam apregoar), mas existem curas – propositadamente no plural – que espelham as tradições, o olhar e a bagagem cultural de cada povo.
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Até aí, penso que todos chegamos. Cada cultura, sua cura e sua visão da saúde. Esse conhecimento tem, no entanto, ficado circunscrito ao local de onde provém, com excepção de alguns curiosos como eu que passaram parte da vida à procura de um Outro diferente do Self e não de um Outro especular. O problema, então, com que nos debatemos em pleno século XXI é o da globalização. E a globalização, com todas as coisas boas que transporta, carrega consigo – sempre – o peso da modulação das minorias, pelas maiorias. A verdade é a de que vivemos num mundo (quase) sem fronteiras, onde é cada vez mais fácil a deslocação de pessoas e objectos. Vivemos num mundo assolado por conflitos e mudanças climatéricas (sim, elas existem) e, cada vez mais, vamos assistindo a movimentos migratórios e à relocalização de população refugiada (agora refugiados políticos, no futuro refugiados do clima). Isso aumenta aquilo a que vulgarmente chamamos de “melting pot”, uma junção de culturas concentradas, misturadas e em interacção no mesmo local. O que faz com que estas pessoas venham a necessitar de procurar os serviços de apoio à sua saúde física e mental disponíveis. Quando isso acontece, assistimos a acompanhamentos dados por técnicos cuja formação base é a que sabemos… sim! Destinada aos problemas dos caucasianos de classe média e sem saberem como abordar o paciente, podendo causar mais dano do que a ajuda que pretendem.
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Desenganem-se aqueles que acham que as técnicas que dominam poderão ser transversalmente aplicadas a qualquer paciente. Que diriam a um Muçulmano que acredite estar possuído por Jinns? Iriam recomendar o seu internamento? Como comunicariam? Todas estas questões são prementes na sociedade actual. Dizem os investigadores que, por volta de 2060, 2/3 do mundo será cristão ou islãmico e teremos de (pelo menos deveremos) conviver de forma saudável uns com os outros. Para isso, não podemos ter especialistas “formatados” num tipo de abordagem etnocêntrica e hermética, a tentar moldar de acordo com a sua visão de saúde mental, o paciente que têm à frente. Não podemos formar “especialistas” sem conhecimento histórico.

O facto é que nem todas as culturas vêem os sintomas da esquizofrenia como doença mental. Há culturas para as quais a ideia de Deus ou Deuses é fundamental e imprescindível no curso terapêutico. Por isso, se um psicólogo quer ser inclusivo deve, essencialmente, saber história e conhecer as bases filosóficas e espirituais dos elementos da sua comunidade. Caso contrário continuarão, para sempre, psicólogos… de caucasianos de classe média, pois claro. E, atenção, não há mal nisso. Mas deve haver a honestidade e integridade profissional de assumir que só podemos acompanhar essas pessoas por falta de bases para, correctamente, acompanhar as outras.
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De ressalvar que a população portuguesa rondava os 10.3 milhões em meados de 2020. De acordo com os dados do census de 2011, para além da vasta maioria de Cristãos (mais de 80%), estima-se a comunidade Muçulmana em 60.000 membros (50.000 Sunitas e 10.000 Xiítas). Temos mais de 56.000 elementos da Igreja Ortodoxa de Leste (a maior parte são imigrantes de países como a Ucrânia e outros). A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias tem cerca de 45.000 participantes. Existem ainda cerca de 163.000 pessoas que se enquadram noutros modelos (outros Cristãos Evangélicos, Baptistas, Adventistas do 7. Dia, Testemunhas de Jeová, etc.). Já a comunidade Judaica em Portugal tem cerca de 2.000 residentes, sendo que metade se localizam na grande Lisboa. Se isto não é, per se, suficiente para os especialistas de saúde – com incidência nos profissionais de saúde mental – serem mais inclusivos na sua visão da doença, da cura e da importância cultural e religiosa do seu paciente, nada será.
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Existe formação complementar que pode ser abraçada pelos aventureiros da inclusão. O mundo virtual tem permitido um aumento significativo de oferta formativa nestas àreas de forma a criar pontes e diálogos em vez de divergências e desarmonias. Não há desculpas. Assumam a visão enviesada ou façam mais e diferente. Por nós, por vós, pela saúde das comunidades onde estamos inseridos.

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