Regina Sardoeira
“Penso, logo existo”, eis, decerto, a única verdade filosófica alguma vez intuída por um filósofo, a única capaz de resistir a tantos e tão variados esforços para contrariá-la ou mesmo destruí-la, desde aqueles que o seu próprio autor empreendeu, no seu tempo e no próprio livro onde a ela arribou, até aos esforços sapientes, ainda que desajustados, do neurocirurgião António Damásio! Espantemo-nos muito, arregalemos os olhos, nós todos que nos achamos absolutamente confiantes nas nossas certezas quotidianas ou em todas as outras que vamos beber a profundíssimos tratados, ou então tentemos vislumbrar (se compreender for muito) por que razão o “cogito” cartesiano pode ser considerado a verdade mais fecunda alguma vez descoberta.
A frase, surgiu, assim, absolutamente coesa, à mente deste matemático do século XVII, não como um sonho ou uma alucinação decorrentes dos fumos de “cannabis” – se quisermos levar ao pé da letra as especulações de Fréderic Pagès – mas na sequência racionalista do uso radical da dúvida.
René Descartes tem que ser considerado o pai da filosofia moderna, o pai do conhecimento moderno, o pai do racionalismo e até o pai da simplicidade matemática e, quem sabe, talvez possamos outorgar-lhe ainda outras paternidades, basta procurar o ADN possível do nosso pensamento de ocidentais! Mas precisamos de inventariar as razões para semelhante fenómeno.
Estamos perante um homem que, desde tenra infância, teve uma enorme necessidade de saber, uma enorme ânsia de atingir a verdade, esse mito, que a educação religiosa lhe fez outorgar à divindade, que a educação jesuítica o impeliu a procurar no saber livresco, mas que ele próprio decidiu, após anos de estudo e investigação, procurar em si – não nos esqueçamos que Descartes não se deixou enredar na omnipotência dos conhecimentos da cátedra, partiu em viagem, leu o livro do mundo, pôde observar práticas e costumes diversos… e só depois chegou, humildemente, a si.
Ao deter-se na sua própria mente, ao ver-se enredado em dúvidas, opiniões, verdades contraditórias, se bem que todas sapientíssimas, e não querendo cair no cepticismo – atitude que de modo nenhum lhe convinha, ainda que haja sido conveniente para Montaigne! – Descartes resolveu o problema numa perspectiva matemática, utilizando o método de demonstração por redução ao absurdo. Eis o raciocínio: decido recuar – e faço-o num mero esforço metodológico – até às fontes do meu conhecimento, verifico se os instrumentos intelectuais e sensoriais de que disponho me garantem a posse da verdade absoluta, a única que me convém. Deixa-me usar de radicalismo, deixa-me caminhar até às instâncias originais das minhas percepções, deixa-me ver, antes de mais, se os sentidos, que fazem de mim um ser da natureza, me levam a ter do real uma noção exacta, sem a menor ocasião para dúvida. Descubro, quase de imediato, que me engano, que muitas vezes vejo o branco, onde afinal está o amarelo, o pequeno, onde descubro, depois, que está o grande, o fruto, para perceber, depois, que apenas vi uma folha…e então, como confiar nos meus próprios sentidos? Como fazer deles, ao jeito dos empiristas, a condição exclusiva das verdades que posso intuir? Não, decididamente, a plêiade de sensações que a mim acorrem, vindas das emanações da sensibilidade, não podem servir aos meus desígnios pois falho, engano-me! Habitualmente, no decurso do viver quotidiano, posso servir-me dos sentidos, pois, meias percepções, auxiliadas por perspicácia e hábito, serão suficientes para orientar os meus passos…mas, alcançar a verdade assim, no seio de tanta imperfeição, será sensato, honesto…possível? Não, claro que não, verdades empíricas servem o senso comum, verdades empíricas auxiliam-nos nas esferas da moral provisória, verdades empíricas podem permanecer no limbo do conhecimento, mas nunca fazê-lo aceder à claridade! Como proceder então, neste momento em que pretendo o absoluto, a fórmula evidente da verdade e nunca simulacros? Reduzir ao absurdo é negar as evidências, reduzir ao absurdo é anular todas as hipóteses ou a hipótese tida como certa; e então, não resta outro caminho ao pensador a não ser recusar o valor dos sentidos como via para o conhecimento certo, uma vez que descobrir que eles nos enganam algumas vezes, pode significar que nos enganam sempre!
Destruído, deste modo metódico, artificial, como se de uma demonstração matemática se tratasse, o valor da sensibilidade como garantia do conhecimento, Descartes encaminha-se para outra das fontes da conhecimento e investe, com a radicalidade de que se encontrava imbuído neste momento da sua meditação, para o valor da razão, a força das evidências do raciocínio. Constata que, do mesmo modo que somos traídos pela sensibilidade, também os raciocínios podem encher-se de paralogismos e o maior dos matemáticos está sujeito, como qualquer outra pessoa, a cometer erros, mesmo nos cálculos mais elementares. E então, a razão segue o mesmo destino dos sentidos: engano-me a raciocinar? Cometo paralogismos? Se assim é, a razão não pode continuar a ser um instrumento válido, quando o objectivo é encontrar a verdade absoluta! E será que posso ter a certeza de que, neste momento, estou a dormir ou não passarão estas congeminações de devaneios?
Ora ao chegar a este momento de perplexidade absoluta, de vazio total, sem qualquer réstia de porto de abrigo ou de ponto fixo para a certeza, uma súbita intuição bafejou o espírito do filósofo. Alto lá, que estou eu para aqui a fazer, enredado em dúvidas? Que actividade é esta do meu espírito que nem sei muito bem se dorme ou se está vigilante? Bem, eu penso, não há dúvida! Se duvido, penso, se me engano penso, se falho, penso…Eu penso, e como pode pensar aquele que não existe?
Aqui está, foi assim que a intuição se abriu, criando um espaço de claridade radiante perante o filósofo deslumbrado…
A seguir… ai a seguir! Mas será que eu quero revelar tudo? Não, que ideia, eu não quero revelar absolutamente nada, não é preciso! Não há revelação, há descrição porque acabei agora mesmo de arremedar o início da 4º parte do Discurso do Método…e é tão simples a sua consulta que me dispensa em absoluto de prosseguir.
Apenas me vou deter neste deslumbramento, nesta apoteose, neste desvendar de uma certeza após o vazio e o negrume da dúvida total! Apenas vou aqui enaltecer o espírito verdadeiramente fecundo e criador de um homem empenhado na verdade, que foi capaz de tudo sacrificar para elevar da poeira do conhecimento secular uma certeza apodíctica: “Penso, logo existo!” Não, «penso, portanto existo», não! «Penso, logo existo» assim, em simultâneo, «Existo, logo penso» e eis a fórmula invertida e venham daí argumentos e lucubrações, génios malignos ou potências celestiais… nada, ninguém conseguirá suprimir a omnipotência desta verdade!
Optimismo, belo optimismo o deste racionalista, vivo ainda e actual após quatro séculos de história, imune a todas as críticas, vitorioso de todas as batalhas…porque ousou realizar o absurdo e, mergulhado nesse absoluto negrume, vislumbrou a ponta sublime da verdade. E depois?
Depois? Querem mais ainda? Um grão de sensatez e de verdade num mar turbulento de imprecisões, incertezas e dúvidas? Um esforço metódico tão arrojado, capaz de fazer emergir uma evidência tão cristalina? Um mérito extraordinário de catarse nos extremos absolutos do vazio mental? E querem mais?
Não serei eu a dar aqui esse mais, que sem dúvida querem, pois enquanto filósofa só me compete lançar a flecha, deixá-la partir e, se acaso ela atingir o alvo, esperar que ela espicace as consciências letárgicas …e então, o” cogito” cartesiano poderá fazer sentido.