Regina Sardoeira
Vejo que não gostaram muito de Descartes e que o cogito, ergo sum pouco vos impressionou. Percebo que verdades como esta não têm valia no mundo apressado e cheio de truques a que chegamos hoje, quando quatro séculos nos separam do célebre matemático francês. Ora bem, aí está, matemático porque essa categoria convém-lhe sobremaneira, talvez mais ainda que a de filósofo… eu não vos falei da demonstração por redução ao absurdo? Do método rígido e de precisa circunspecção com que ele analisou os seus recursos de ser pensante para abalar a sua estrutura, até aderir ao zero absoluto?
Aí está: o pai do racionalismo ocidental, o autor do Discurso do Método e dos Princípios da Filosofia sempre raciocinou e procedeu como um matemático. O problema foi querer continuar a actuar como matemático uma vez de posse dessa soberana intuição, desse axioma claro e distinto que foi, que é o cogito, ergo sum! O problema foi ter necessidade de justificar uma intuição, foi sentir a força do seu espírito, profundamente racionalista e analítico, em choque com a manifesta superabundância da verdade absoluta intuída!
O drama cartesiano surge no exacto momento em que, incapaz de abalar o poder do penso, logo existo, empreende a árdua tarefa de justificá-lo. Justificar uma verdade absoluta, encontrar fundamentações e razões para a emergência de uma tal certeza não pode ter outro resultado senão extravasar para muito além de si própria e foi o que aconteceu com René Descartes a partir da hora em que, parando de deleitar-se na evidência da sua primeira certeza, se dispõe a esmiuçá-la, tanto quanto possível, a fim de poder ajustá-la aos ditames da razão.
Perplexo, vislumbra uma primeira contradição, a que ressalta do simples facto de ele, Descartes, ser apenas um homem, imperfeito como outro qualquer, capaz do erro e da dúvida, portanto; e contudo capaz também de desentranhar de si a luminosidade de uma certeza inabalável. Disse-vos que ele era um matemático, não disse? Pois então vejam como raciocina este insaciável pesquisador da evidência.
«Eu, Descartes, vejo nitidamente que sou imperfeito, por várias razões, a mais próxima das quais acabou de tornar-se visível quando recorri ao método de redução ao absurdo e levei a dúvida metódica até às últimas consequências: se duvido, sou falaz, se cometo paralogismos, careço da segurança total na base do raciocínio, não sou, por isso, perfeito. E contudo pude, no ápice do vazio extremo, engendrar em mim uma verdade evidente, uma certeza, com todas as características necessárias à perfeição! Mas como posso eu justificar a perfeição em mim, eu, que me declaro imperfeito, eu, que me vejo enredado em perplexidades e questões contínuas? Tenho que reconhecer que não pode ter vindo de mim o poder de uma verdade deste modo perfeita! A outra das razões para recusar a paternidade da evidência em mim vai direita ao mais óbvio das motivos: pode o imperfeito gerar o perfeito? E , se pode, como pôde gerar em si apenas uma verdade? Porque não pôde engendrar, de si e em si, todas as certezas possíveis? Não, não posso ter sido eu o criador do perfeito, que apesar de tudo reconheço haver em mim!
E então? Se não posso fazer depender de mim a génese da perfeição, que contudo vislumbro em mim, poderei acaso afirmar: a minha perfeição veio do nada? Não, repugna-me tal origem, o nada, nada é, e nada pode originar, muito menos uma verdade com os atributos totais da perfeição!
Resta apenas uma hipótese: a de que ela, essa certeza iniludível, que nenhum argumento céptico poderia destruir – eu próprio esgrimi-os todos contra ela, sem resultado – tenha vindo ter ao meu espírito por alguém mais perfeito do que eu! Mais perfeito, mas ainda imperfeito, aqui e ali? Não, mais perfeito em absoluto, porque o mais perfeito pode ainda conter em si a imperfeição não sendo por isso melhor do que eu sou! Perfeito, na acepção completa do termo, Perfeito na total claridade e distinção de toda a verdade possível! E um ser assim Perfeito, um ser a quem escape toda e qualquer sombra de dúvida ou falsidade só pode ser Deus, esse que garante o perfeito que existe em mim, muito embora não me tenha conferido toda a perfeição que ele próprio a si outorgou! »
Foi assim, caros amigos, que Descartes justificou a pureza original do Cogito, não teve outro remédio senão proceder como matemático, indo em busca da razão das razões, e assim alicerçar a razão inata e original nas correntes metafísicas. E então, Deus, que ele se apressa a demonstrar à maneira dos lógicos, sob a forma de vários silogismos, é a única garantia da verdade possível ao homem, o Gerador em nós das ideias inatas, simples e evidentes, mas concedidas à nossa razão em pequeno número e quase todas na esfera da matemática, a mais etérea e sublime das ciências!
Meus amigos e leitores prováveis, vêde como Descartes desmoronou a grandiosidade da sua certeza intuitiva: retirou de si o valor de semelhante proeza para a conceder por inteiro a uma divindade que falaciosamente se propõe justificar e demonstrar! Razão teve mais tarde Feuerbach quando escreveu num rasgo de sabedoria: «Quanto mais de si o Homem dá a Deus, menos lhe resta.»!