Quando temos de ser dois (ou mais), para que um aguente
Tatiana A. Santos
Sendo uma das Psicólogas da Associação Borderline Portugal e tendo 15 anos de experiência a acompanhar os chamados “Estados-Limite”, este foi um dos temas sugeridos pelas minhas pacientes. Normalmente não é falado, pouca literatura se encontra e é profundamente assustador não só para quem vive estes momentos, mas também para quem convive externamente com estas situações. Em primeiro lugar – e por alto, pois tenho dedicado – grande parte do meu tempo a explicar e desmistificar o que é a síndrome Borderline ou o transtorno de personalidade Borderline / Estado-Limite – trata-se de uma perturbação grave, caracterizada pelas mudanças súbitas de humor, medo de ser abandonado e comportamentos impulsivos que resultam muitas vezes em consumo de drogas, promiscuidade sexual e situações de auto-mutilação por uma total dificuldade em lidar com a frustração. Geralmente, existem momentos de estabilidade que são alternados com episódios de ira, depressão e ansiedade, manifestando aqui os comportamentos descontrolados. É comum confundir com doenças como a esquizofrenia ou doença bipolar, pois todas se encontram no espectro das psicoses, ainda que a personalidade Borderline seja uma patologia de “fronteira”. Daí se chamar Estado-Limite. Digamos que tem um pé na neurose e outro na psicose, podendo, por isso, aparecerem momentos de surto, desrealização, despersonalização, dissociação e ideação paranóide.
Hoje queria aproveitar o pedido das minhas pacientes para procurar explicar um pouco da dissociação e despersonalização que podem ocorrer no Borderline. Quando falamos de sintomas dissociativos, falamos da perturbação ou descontinuidade da integração normal da consciência, memória, identidade, emoção, percepção, representação corporal, controlo motor e comportamento. Estes sintomas foram incluídos nos critérios diagnósticos do Transtorno de Personalidade Borderline no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) IV, tendo sido mantido no DSM 5. Podemos ver esta dissociação como um fenómeno de distanciamento da realidade. O Borderline passa a ter uma visão distorcida e não realista daquilo que o rodeia, podendo até mesmo esquecer-se de certas acções que fez e ter períodos de amnésia.
Grande parte das pacientes com TPB que acompanho teve momentos traumáticos na sua infância ou na sua adolescência, antes mesmo dos primeiros sintomas da patologia surgirem. Por isso, não podemos considerar o mecanismo de dissociação sem nos focarmos na existência de um ou mais traumas. A dissociação é um mecanismo de defesa intra-psíquico precisamente contra o trauma e contra dor. Protege-nos do medo esmagador da aniquilação, levando a uma compartimentalização de sentimentos, de memórias dolorosas e na alienação do ‘Eu’. Ou seja, o ‘Eu’ fragmenta-se em partes que melhor ajudem a suportar o trauma. Existem duas grandes causas ligadas ao desenvolvimento deste mecanismo de defesa – as repetidas interacções parentais assustadas/ansiosas ou assustadoras e as repetidas interacções entre a criança e um cuidador emocionalmente indisponível. Para além disso, as situações de violência física, abusos, violações. Violência doméstica (como vítimas directas ou indirectas), podem conduzir a estes momentos em que, por defesa, há uma clivagem do Eu na tentativa de manter alguma sanidade e resistência a momentos que, caso contrário, seriam impensáveis de integrar.
Momentos como o sonhar acordado, são momentos de dissociação considerados não patológicos, mas também podem surgir situações de dissociação severa onde ocorre a fragmentação do ‘Eu’ e surgem múltiplos ‘Estados do Ego’ que exercem o controlo do corpo, levando a problemas de memória, confusão de identidade, maiores alterações de humor e mudanças emocionais e comportamentais bruscas. Ainda como estados de dissociação temos a desrealização em que há uma sensação de irrealidade ou estranheza com o próprio ambiente, bem como distorções de espaço e de tempo. Há como que uma sensação de anestesia sensorial que leva a pessoa a acreditar poder suportar/tolerar a dor e/ou o calor e, muitas vezes, envolver-se em dinâmicas sado-masoquistas por isso mesmo. E temos ainda a despersonalização que se caracteriza pela sensação de rotura com a personalidade, de distanciamento de si mesmo. Como se existisse um ego observador. Há um desapego da consciência do eu e do corpo, uma sensação de estar a viver um sonho onde podem ocorrer alterações de percepção ou alucinações em relação ao corpo, auditivas e visuais.
Perante estes sintomas, para além da continuidade de um acompanhamento psicoterapêutico permanente que irá ajudar a controlar a impulsividade, a tolerância à frustração e a auto-estima, é necessário um acompanhamento psiquiátrico na redução dos chamados “sintomas positivos” dos estados psicóticos. Esta medicação dará maior poder ao paciente para que se sinta mais unificado com o seu Eu, podendo também o psicoterapeuta ser mais eficaz no seu trabalho de fundo.