Regina Sardoeira
Gostaria de escrever uma crónica que pudesse explicar cabalmente o abalo de uma guerra, muito específica e actual, que grassa neste momento e envolve (pelo menos visivelmente) dois países; confesso, porém a imensa dificuldade de levar a cabo um tal intento.
Percebi (e digo-o sem qualquer rebuço) que pouco sabia da Ucrânia, de todos os pontos de vista, porque pouco me interessara. Exceptuando a sua localização geográfica, o facto de ter pertencido à União Soviética, e principalmente, a corrente de imigração que trouxe para trabalhar na minha família uma jovem mulher – a Victória – eu desconhecia (e ainda desconheço muito) os meandros desse país afastado.
A Victoria era engenheira têxtil no seu país e, em Portugal, sentiu – se recompensada com um salário de empregada doméstica. Esse facto fez-me perceber as dificuldades vividas por aquele povo e fui solidária com ela que queria legalizar a sua situação em Portugal, fixar residência e trazer a filha de cinco anos para cá. Tentei contribuir para a sua integração do modo que me foi possível, até que ela decidiu deixar o emprego e a casa. Não sei se voltou para a Ucrânia, se permaneceu em Portugal e conseguiu os seus objectivos, porque lhe perdi o rasto.
De repente, no contexto das notícias sobre a guerra, percebi que a Victória esteve cá, em casa da minha mãe, há vinte anos e que nada sei dela desde então. E, nestes dias de medo e revolta no seu país, tenho pensado nela e na sua filha, hoje com 25/26 anos, e questiono-me: que caminhos terá seguido esta mulher corajosa que percorreu sozinha 5000 quilómetros, desconhecedora, em absoluto, da língua e do país para onde veio?
Soube então que muito mais que perceber e analisar as causas próximas e afastadas do conflito presente , cuja raíz consegui, a custo, destrinçar, me causa horror o destino das pessoas, de todas as que são comuns, ou seja, desligadas de qualquer tarefa ou função político-militar, imbuídas da sua vivência rotineira, indo e vindo dos empregos, habitando aqui ou ali, levando a vida de modo simples e confiante. Horroriza-me o destino delas porque deveriam estar cientes das circunstâncias do seu povo e dos acordos e conluios dos seus dirigentes e não estavam, ou, se estavam, deixaram o tempo passar, adormecidas e confiantes, até serem atingidas pela catástrofe. Ora, essas pessoas, que designei como sendo comuns, representam sempre a maioria de um povo, qualquer que ele seja, e, por essa razão, deveriam poder decidir a norma das suas existências.
É necessário estar vigilante. É necessário sondar, muito para além do que é imediatamente visível e que, ao ser propalado pelos media, se transforma na verdade que é mais conveniente. É necessário ser activo, no pensamento e na acção, não se deter à espera que decidam, por nós, a nossa vida. Senão, no cerne do conflito, quando os dirigentes, movidos por interesses, ambições, prepotências, legítimos na esfera dos actos políticos mas ilegítimos na ordem das necessidades fundamentais dos cidadãos, decidem recorrer à violência, não lhes resta alternativa a não ser fugir, esconder-se, esperar que passe, enfileirar nas hostes da batalha ou morrer.
Poderia, neste contexto, marcar a minha posição relativamente ao conflito, posicionar-me a favor e contra, elogiar uns e hostilizar outros…mas não sou capaz. Não é o heroísmo ou a ferocidade dos líderes, a sua incapacidade de diálogo, o modo como escolheram actuar, as decisões que vão tomando, num palco que é de guerra, que me importa destacar. Não acredito na irrepreensibilidade absoluta de um, por contraste com a ferocidade absoluta do outro, porque ambos partilham a vigência de um cargo político, a assinatura de acordos e, decerto, a violação, aqui e ali, das decisões ratificadas. Mas o recurso à guerra efectiva, com combates reais a fazerem ruir mundos edificados, tal como aconteceu outrora e vem acontecendo quase sem nos darmos conta, parece-me a mais irresponsável e cruel das decisões.
Vivemos um tempo de enorme capacidade de comunicação. Todos estão ligados entre si, é possível conversar, discutir, deliberar, de um lado para o outro do mundo, sem necessidade de cruzar os céus ou sulcar os oceanos. E é por isso que não aceito e nunca vou aceitar, por mais que mo expliquem os mais doutos e específicos analistas, a necessidade de vestir uma farda, pegar em armas, accionar bombas, disparar mísseis, manobrar tanques e tudo o resto que resulta desses actos concretos. O mundo já foi, ao longo dos séculos, separado, esquartejado, dividido, assinalaram-se fronteiras, criaram-se nações, povos, costumes, tradições. Apesar disso os antagonismos persistem porque uns querem separar-se e ganhar autonomia, outros querem apropriar-se de territórios a que crêem ter direito,formam-se grupos minoritários no seio de um povo com o desejo de se sobreporem à maioria: em toda a parte (basta reflectir um pouco) deparamos com hostilidade, rancor, violência. Enquanto escrevo, penso nos vários locais no mundo onde estes conflitos estão activos, onde as pessoas fogem para escapar ao terrorismo ou se juntam aos revoltosos para lutarem por um ou outro lado da contenda. E percebo que esta guerra desencadeada agora, cuja notícia se tornou predominante nos últimos dias, está muito longe de ser a única.
As guerras actuais causaram de 1.000 a 9.999 mortes nos últimos anos e encontram-se listadas pelo que basta, somente, fazer uma pesquisa. No século XXI, portanto nos últimos 22 anos, estão registados 26 conflitos armados com o seu séquito de mortes e atrocidades. Aconteceu a guerra do Afeganistão, que ainda dura, a guerra do Iraque, também,a guerra do Líbano, a guerra russo/georgiana, a guerra de Israel contra a faixa de Gaza, a guerra em Dombass, ainda vigente,a guerra civil iemenita, conflitos na Turquia, guerras várias em África…e, no fim da lista, o actual conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Vivemos, pois, em estado permanente de guerra mas não damos conta: porque não acontece à frente dos nossos olhos, vamos sabendo dela pelas notícias e situamo-la muito longe de nós.
Sendo assim, como podemos marcar posição, defender uns e atacar outros, aceitar as mais díspares análises quando, no fundo, tudo provém desta nossa espécie humana tão incrivelmente civilizada e imbuída, contudo, do espírito de conquista e de necessidade de escravizar própria das contendas medievais?
Celebramos heróis e contamos, entre muitos outros, com Júlio César, Gengis Khan, Alexandre o Grande, Napoleão, e alguns que dirigiram vastos territórios e depois foram depostos como Hitler, Stalin, Saddam Hussein, etc. e, todos eles, no seu contexto histórico, incentivaram e promoveram o conflito e a guerra. E nenhum destes homens e de todos os outros, cuja lista me dispenso de transcrever porque ela é de fácil acesso, esteve sozinho no palco dos acontecimentos. Quero com estas palavras expressar a vocação guerreira do homem e a sua volatilidade, a necessidade de tomar posições e atacar, defendendo, ou defendendo, atacar, a premência de submissão a um líder e o fanatismo que impede de ver o outro ponto de vista.
Ninguém é inocente, ouso proclamar, a não ser, decerto, as crianças pequenas e os dementes, todos pactuamos, mesmo que não lutemos activamente numa guerra qualquer. Qualquer um odeia outros e é vítima de ódio, qualquer um urde e aplica actos de vingança, qualquer um se fecha no seu pequeno mundo considerando-se bem melhor que o vizinho ou invejando-o por adivinhá-lo melhor.
E, sem saber muito bem porquê, ou talvez porque, bem no íntimo, creia que no mundo, e desde sempre, se deu mais atenção aos nomes sonantes do que ao povo comum, lembrei-me do poeta Berthold Brecht , fui procurar o livro e copiei este poema escrito há 87 anos, mas pleno de actualidade
Perguntas de um trabalhador que lê
Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
Nos livros estão nomes de reis;
Os reis carregaram as pedras?
E Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem a reconstruía sempre?
Em que casas da dourada Lima viviam aqueles que a construíram?
No dia em que a Muralha da China ficou pronta,
Para onde foram os pedreiros?
A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo:
Quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares?
Bizâncio, tão famosa, tinha somente palácios para os seus moradores?
Na legendária Atlântida, quando o mar a engoliu, os afogados continuaram a dar ordens a seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César ocupou a Gália.
Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro?
Felipe da Espanha chorou quando a sua armada naufragou. Foi o único a chorar?
Frederico 2º venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem partilhou da vitória?
A cada página uma vitória.
Quem preparava os banquetes?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias,
Tantas questões
(Berthold Brecht, 1935)