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Cidadania e Sociedade

METÁFORA DO MUNDO

Regina Sardoeira

Hoje, escrevo uma metáfora, como crónica deste tempo, e dedico-a a todos os que sofrem. Visivelmente, nas imagens mostradas até à tontura, na sombra e no segredo, para aqueles onde o mundo não pôde chegar.

Quis escrever sobre o amor para fugir de vez aos temas de tristeza. Comecei a pensar nas palavras e desceu uma lágrima. Sujou-me o papel em que escrevia e a palavra amor,  diluída na tinta, começou a escorrer, a escorrer sem parar.
Rasguei a folha e voltei  a tentar. Nada de temas tristes. Há o ódio, há a guerra, há tudo isso que coloca barreiras entre homens e homens. Mas há amor… sim, há amor. E a lágrima que não caiu quando escrevi guerra, ódio, trincheira rebentou mais uma vez e caiu sobre o papel: quatro regos de tinta a escorrer de cada letra e a palavra a sumir-se, a sumir-se…
Que mistério é este? Eu quero escrever sobre o amor! Estou preparada, conheço o tema, estremeço por dentro, sei muito de amor! Ah, estas lágrimas!… teimosas que sois! Não vêdes que me estragais a limpidez do trabalho? Quem vai agora conseguir ler as palavras que vós transformastes em míseros borrões? Não me deixais, caís e voltais a cair, sois um rio, uma torrente de angústia… Que devo pensar? Que todos os temas são tristes? Que nem o amor é a marcha triunfal que conduz aos céus rosados da ventura?
Não pode ser! Se assim fosse, porque correríamos todos atrás do amor?
Outra vez as lágrimas! E eu que queria fazer-vos sorrir, enlevados, ponho-me a chorar e não escrevo…pois quê?! Será que a minha história de amor é triste como uma história de guerra? Será que ela é pungente como o ódio e as trincheiras?
Eu vi o amor, mágico e sublime. Vi-o rosado e transparente como aurora primaveril. Ah que limpidez!
Contemplei-o à distância, com enlevo infantil e  cheguei  a ter receio de manchá-lo, trazendo-o para mim. Que fazer? Era preciso purificar-me, banhar-me em águas cristalinas, lavar-me de toda a mancha…Oh com que alegria eu despi as vestes e me lancei na espuma, com que alegria eu me preparei para receber a estrela incandescente!
Eis-me sem mancha. Regressou a mim a pureza cândida, e ali está ele, o amor, a magia, o feitiço, estão prontos para se fundir comigo!
Oh com que alegria, com que transporte eu mergulhei nos braços do amor! E os céus rosados abriram-se em fogo e o fogo tragou-me e eu era parte do amor e o amor parte de mim. Que loucura! Como eu era forte, como eu era bela, como eu era grande! A minha estrada só tinha um sentido e esse era em frente e para cima!
Oh lágrimas! Agora embaciais-me a vista, não me deixais ver, eu não sei se há estrada, o nevoeiro cerra-se…
Foste cruel, amor! Mostraste-te rosado e festivo e afinal tinhas espinhos, eras como a rosa cuja cor vestiste… Enterraste os teus dardos na minha pele despida de máculas, não acreditaste que era pura e nobre a minha dádiva!
Oh amor, vê que eu sangro! Cada poro da minha pele é uma ferida que tu abriste: tu! Parecias meigo, cristalino e puro e afinal encheste-me de manchas.
Por onde anda a magia, por onde anda a luz?
Estou só. Estou só e  sangra a minha pele. Vê: são rios de sangue e não há água para me lavar. Caí das alturas onde tu me lançaras e só tenho chagas, chagas vivas!
Como a noite é longa! Como dói este passar de horas solitário, este mergulhar nos abismos do engano mais vil!
Oh perdoai-me se vos enganei! Prometi-vos uma história bela de magia e luz e vêde: só tenho lágrimas, pobres lágrimas de amor ferido.
Ah dai-me a guerra, o ódio, as trincheiras! São temas menos tristes que este meu amor solitário, grande, grande como o mundo e rodeado de trevas!
Quem tragou a pureza diamantina daquele céu rosado? Fostes vós, dragões da maldade,  conspiradores vestidos de cetim? Porque saístes dos infernos a que pertence a vossa casta? Porque quereis transformar o meu sonho de amor no tinir das espadas, porque verteis o meu grande amor em taças de amargura?
Odeio-vos espiões malditos saídos das entranhas. Odeio a vossa raça.
Ele era puro, era mágico, era o meu amor que descia e tornava claro e límpido tudo à sua volta. Mas viestes vós, dragões, vomitastes fogo envenenado sobre as taças da nossa felicidade, espalhastes ódio e violência sobre o que era fantástica ternura… Oh dragões malditos, vêde o que eu tenho hoje, contemplai a vossa obra! Lágrimas, só lágrimas e esta solidão impotente, este ter atados os membros à crueldade do destino.
Guerra, guerra aos malditos que me não deixam viver o meu sonho de amor! Venham, venham finalmente espetar a vossa pele nauseabunda na ponta da minha lança!
Estou aqui. Tenho a força  do amor ferido e conheço os meus inimigos. Quem aceita o desafio? Quem vem finalmente bater-se pelas causas do amor e da paz?
Ouvi-me leitores: eu ludibriei-vos. Afinal, sou como os outros. Quis escrever uma página encantada de amor e venturas e eis que acabo declarando guerra!
Fecho-me, calo-me. Neste mundo aleijado, quando nasce um amor é para que lhe encham a boca de fel e desventura.

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