Eis a morte, a morte trágica, a morte que apavora, o fantástico esqueleto de gadanhas nas garras ferozes, a ceifar multidões de vida por minuto.
In “O Pobre Tolo” – Teixeira de Pascoaes (1924)
Anabela Borges
Cai neve em Kiev e o coração chora.
A vida é um céu diferente, todos os dias – um céu opaco, um céu translúcido, um céu fechado como abóbada de cristal, um céu infindo a perder de vista, um céu branco, um céu negro, um céu plúmbeo, um cor-de-chumbo, um de prata, outro de oiro, um rosado, outro avermelhado, um céu azul, um céu sem luz, um céu pontuado de estrelas, um céu de gelo, um céu quentinho, um céu de montanhas brancas, um céu de cavalos-marinhos… eu sei lá quantos céus!
Mas hoje acordamos todos debaixo do mesmo céu de trevas. Independentemente da cor e morfologia que possa adquirir nas diferentes partes do planeta, o mesmo céu de sombra nos vela os sonhos, o mesmo peso nos cobre a liberdade de pó e de cinzas.
GUERRA, PESTE, MISÉRIA, DOR E DEVASTAÇÃO. Dois anos de pandemia não são suficientes para alimentar o ódio nem a fome de desgraça. É preciso acrescentar mais sofrimento ao mundo. Veio a peste e veio a guerra. E nós não estamos preparados. Como referiu Albert Camus “Houve no mundo tantas pestes como guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.” (In “A Peste”, 1947).
Cai neve em Kiev e o coração chora.
As sirenes soam como anjos da morte vazios de sentido… ou então: como sentinelas vigilantes, doces avisos para a possibilidade de vida nos braços de uma mãe, abraço doce como um castelo de algodão doce. Os comboios partem carregados de gente, gente que transporta vazios de alma e restinhos de esperança preenchendo o fundo dos olhos. As estações de metro são bunkers. E os mesmos bunkers são maternidades e lares de terceira idade. A vida e a morte choram e adormecem lado a lado. Não me lembro de comer. Há quantas horas não como? Só tenho frio. O chão é frio. Tenho frio. Está a nevar?
Cai neve em Kiev e o coração chora.
É março e o coração chora. Chora quando estaria prestes a quebrar o espanto prolongado do frio d’Inverno; chora quando estaria prestes a ressalvar as alvíssaras mais puras, como pétalas perfumadas, à Primavera.
Às vezes só queríamos a nossa vida normal. Queríamos voltar ao que éramos, sem qualquer novidade ou agitação. Às vezes, só queríamos a nossa velha vida de volta.
Lentamente, a luz descobre-se por entre as encobertas da manhã. Teimosa, uma rola brava pousa no f(r)io da vida e procura no ar sinais de esperança. Mas hoje, bem vistas as coisas – só por hoje –, não há pombas da paz.
Cai neve em Kiev e o coração chora.
O mesmo Pascoaes escreveu “Que é viver senão a paciência de sofrer ou teimar em não morrer?” (In “São Gerónimo e a Trovoada” – Teixeira de Pascoaes, 1992).
Pois, então, sejamos teimosos como a rola brava.
Resistiremos!