Regina Sardoeira
A tentativa de aceder à hegemonia, usando todos os meios disponíveis, é de todos os tempos, no que diz respeito à sociedade dos homens. Basta lançar um relance sobre a História para percebermos esta realidade: em certas épocas, ciclicamente, um homem ergue-se, empoderado por milhares de outros, e reivindica, para si o domínio do mundo.
Há o povo comum, todos aqueles que não querem destacar-se (ou não podem fazê-lo), todos os que aceitam ser governados por este ou por aquele, os súbditos ,para usar uma só palavra, mesmo que sejam votantes de uma democracia; e depois há os outros, uma élite, um só homem, em certos casos, que outorgam a si próprios o direito de actuar sobre as maiorias, subjugando-as à sua vontade, quase sempre suportada por uma ideologia.
Esta dicotomia é de todos os tempos e a calma aparente de certos períodos na história dos homens não é mais do que o momento necessário para a organização de nova investida. As épocas mudam, porque a evolução é constante, e a tecnologia disponível num certo tempo fica obsoleta num curto espaço, o que lança um véu de obscuridade sobre aqueles que querem entender. Porém, em última análise, as linhas do conflito que opõem, em guerra, homens contra homens, é idêntica. E, no seu âmago é possível detectar, invariavelmente, a luta pelo poder, a tentação hegemónica.
Há, na Rússia de hoje, como houve sempre, nos sucessivos regimes czaristas, um forte apelo ao domínio na tentativa de restaurar o imperialismo perdido ou disfarçado. O líder dos russos, Vladimir Putin, encabeça, nesta época, essa necessidade ancestral de criar uma nova ordem, em seu redor, por oposição ao liberalismo da Europa e dos Estados Unidos e, aparentemente, tem toda uma ideologia filosófica e geopolítica como base e fundamento. É citado o filósofo Alexándr Gélievitch Dúgin como sendo o inspirador de um movimento que poderá ser traduzido como “a quarta vaga” no que diz respeito às concepções do mundo vigentes até aos dias de hoje. Dúgin defende o “Estado total” e o nacionalismo baseado no cristianismo ortodoxo. Apoia o modelo económico orientado pelo Estado autocrático. A democracia não é um valor na sua ideologia pelo que deve ser descartada, assim como a forma de governo parlamentarista, o individualismo e os direitos humanos. Para o filósofo, são repulsivos os novos “dogmas liberais” do Ocidente e recentes “formas patológicas”.
Não se sabe, exactamente, se Putin será, efectivamente, um seguidor de Dúgin, mas a sua acção, patente ao mundo, principalmente nos últimos dias, parece aproximar-se desta ideologia. Nessa ordem de ideias, é seu objectivo criar uma “Eurásia” de proporções gigantescas, incluindo a China e um conjunto de outros países, tornando-se, desse modo, um império com capacidade para igualar o ocidente.
Dugin apoia o pensamento de Martin Heidegger, nomeadamente o conceito geofilosófico de Dasein ou as possibilidades do ser, as quais são constituintes do seu próprio ser. Sendo-no-mundo, o Dasein, conceito heideggeriano no contexto do qual o homem não se mostra como um sujeito individualizado que representa objetos mentalmente: pelo contrário, perde-se na impessoalidade do mundo compartilhado com os outros e lida com o que está ao seu redor de modo prático. A individualização passa pela disposição afetiva fundamental, a angústia. De acordo com Dugin, as forças da civilização ocidental liberal e capitalista representam o que os antigos gregos chamavam de hubris , “a forma essencial de titanismo” (a forma anti-ideal), que se opõe ao Céu (“a forma ideal- em termos de espaço, tempo, ser “). Por outras palavras, o Ocidente resumiria “a revolta da Terra contra o Céu”. Ao que ele chama de universalismo “atomizador” do Ocidente, Dugin opõe um universalismo apofático , expresso na ideia política de “império”. Os valores da democracia, dos direitos humanos, do individualismo, etc. não são considerados por ele como universais, mas exclusivamente ocidentais. Em 2019, Dugin travou um debate com o intelectual francês Bernard-Henri Levy sobre o tema do que tem sido chamado de “a crise do capitalismo” e a insurreição dos populismos nacionalistas.
Dugin desaprova o liberalismo e o Ocidente, particularmente a hegemonia dos EUA. Ele afirma que “Estamos do lado de Stalin e da União Soviética”. Diz-se conservador: “Nós, conservadores, queremos um Estado forte e sólido, queremos ordem e família sã, valores positivos, o reforço da importância da religião e da Igreja na sociedade”. E acrescenta: “Queremos rádio e televisão patrióticos, especialistas patrióticos, clubes patrióticos. Queremos meios de comunicação social que expressem os interesses nacionais”. Segundo a cientista política Marlene Laruelle, o pensamento de Dugin, principal fabricante de um fascismo à russa, poderia ser descrito como uma série de círculos concêntricos, com ideologias de extrema direita sustentadas por diferentes tradições políticas e filosóficas (nazismo esotérico, tradicionalismo, perenialismo ou filosofia perene, a revolução conservadora alemã e a nova direita europeia) na sua espinha dorsal.
Nesta linha, pode entender-se a acção actual de Vladimir Putin. A Ucrânia é um pais soberano à luz do conceito de soberania ocidental; mas, do ponto de vista russo, é apenas um território indevidamente separado que é necessário aglutinar de novo já que, nas suas próprias palavras , a Ucrânia pertence à Rússia.
Por outro lado, esta acção militar, sendo observada por todo o mundo ocidental, pretenderá mostrar o poder hegemónico de um líder autocrático e imperialista, em oposição aberta aos valores liberais do ocidente.
Estamos, por isso, perante um momento particular de ataque à sociedade global de que fazemos parte: e é por causa disso que sofremos e vamos continuar a sofrer as consequências deste conflito que não nos visa directamente mas cujos reflexos nos atingem.
Vladimir Putin segue as ideias do filósofo Alexándr Gélievitch Dúgin que é seu conselheiro informal e, na óptica deste filósofo, o ocidente, ou seja a Europa e os Estados Unidos representam a incarnação do mal, pelo que deve ser contida.
As ideias de Dúgin envolvem a destruição de qualquer superpotência e a criação de um mundo onde existam múltiplas formas de poder. A sua ideologia é designada como tradicionalista e opõe-se à modernidade . O tradicionalista olha para as instituições modernas comoHá intrinsecamente corruptas: tudo o que tenha surgido em decorrência do iluminismo, deve, pois, ser visto como suspeito.
Há várias semanas assistimos ao conflito Russia-Ucrânia que foi antecipado por outros idênticos e na mesma zona geográfica. Essa circunstância deve reforçar em todos nós a necessidade de investigar as motivações profundas, quer do lado ocidental, a que pertencemos, quer do oriental, a que talvez sejamos, em grande parte, alheios. É necessário que ultrapassemos a critica elementar, o repúdio básico e o elogio apressado para, deste modo, sermos capazes de ver ou, no mínimo, entrever a realidade. Temos essa obrigação, humanamente falando.
(Para escrever este texto investiguei alguns documentos a partir da internet. Reconheço faltarem-me ainda muitos elementos para conseguir elaborar uma análise esclarecida e esclarecedora. )