Soni Esteves
Nos últimos tempos, as palavras paz e guerra têm feito parte das nossas conversas, recorrentemente, e, sobretudo, temos colocado nelas uma carga emocional diferente, a comprovar que o peso de cada palavra se mede sempre pela vivência que a convoca.
Neste período letivo, os meus alunos desenvolveram um projeto interdisciplinar em torno dos temas “Direitos Humanos” e “Interculturalidade”. Por entre as múltiplas atividades, foi-lhes proposto lerem o meu último livro “A que sabe o mar”. Para quem não sabe, ele conta a história de dois rapazinhos, de cinco e sete anos, e das circunstâncias que os vão levar à condição de refugiados. Antes da leitura, foi pedido aos alunos que registassem o significado que tinham para eles as palavras “paz”, “guerra” e “refugiado”. Foi interessante verificar que, na maioria dos casos, não estabeleceram qualquer relação entre os termos, tendo-se referido a eles individualmente. Relativamente aos primeiros, assumiram-nos, em muitos casos, numa perspetiva pessoal: “a paz é o silêncio e a liberdade”, “estar um pouco em silêncio, sem estar preocupado”, “a calma e estar sozinho”, “precisamos dela para descansar”, “quando tudo está calmo”, “é estar em harmonia”, “é quando as pessoas estão calmas e felizes”… Da guerra disseram: “é quando as pessoas estão todas viradas umas contra as outras”, “é quando as pessoas estão todas a lutar”, “são países que combatem com as tropas, “é quando as pessoas lutam para ganhar coisas”, “a guerra é luta, não há calma, não há felicidade”… Quanto ao último vocábulo, muito desconheciam o que são refugiados, e os que sabiam culpavam a pobreza para a situação que os conduziam a essa condição.
Temos de perceber que estas crianças são alunos do 5.º ano, têm entre os 9 e os 11 anos e passaram os dois últimos anos a acreditar que o mal maior que podia acontecer ao mundo era ser assaltado por uma pandemia. Embora uma pandemia possa ser devastadora, talvez estas crianças tenham sido poupadas à grandeza dos números e à visão das filas de gente à porta dos hospitais, ou das pilhas de caixões à espera do destino final. Talvez as imagens mais inacreditáveis que guardem desse período sejam o afastamento da escola, a reclusão forçada, a visão das ruas vazias e o silêncio instalado. Não será, portanto, difícil de entender que, durante a leitura do livro, tivessem surgido muitas interrogações sobre a verossimilhança ou efabulação de quanto liam, tão distantes eram as realidades apresentadas.
De facto, estavam perante um mundo desconhecido. Os acontecimentos eram tão crus, e as vivências das personagens tão espantosas, que não lhes parecia legítimo que fossem apresentados tamanhos desafios a duas crianças, mais novas do que eles, leitores. Como imaginar o troar de tiros pelas ruas, o fogo a entrar por dentro das casas e a obrigar as pessoas a escolherem a forma de morrer; como imaginar que, em minutos, uma aldeia se reduz a fumo, cinza e ruinas; como imaginar o cheiro a sangue e a morte; como imaginar homens, iguais a outros homens – não bichos – capazes de matar, raptar, em nome de uma verdade que não era a verdade dos outros; como poderiam aquelas duas crianças, que a sorte poupou, continuar a manter sonhos quando parecia que tudo se havia perdido? E assim se foi gerando uma proximidade, uma empatia, uma espécie de carinho pelas personagens, e a vontade de conhecer por inteiro aqueles destinos crescia.
Por fatalidade, antes ainda da conclusão da leitura, uma realidade profundamente triste veio bater-nos à porta. No dia 24 de fevereiro, todos os alunos, mesmo os mais distraídos com as questões do mundo, perceberam, em tempo real, aquelas noções anteriormente tão abstratas. Alguém tinha interrompido a paz de crianças como eles, de uma forma tão cruel como só uma guerra pode ser. E não era longe, era mesmo aqui, na Europa, a nossa casa. Terminamos, entretanto, a leitura do livro. Alguns mostraram-se comovidos; outros, na sua ingenuidade comovente, aventaram a hipótese de eu ter previsto, qual vidente, os últimos acontecimentos que levaram à onda de refugiados; outros, ainda, consideraram que a história deveria ter uma continuação, uma vez que o final fica em aberto. Será esse o próximo desafio a que terão de responder, dar um destino àquelas personagens. E eu só espero que os finais idealizados por estes alunos mostrem que a esperança ainda tem espaço nos seus pequeninos corações, porque uma coisa é conhecer o mundo, outra é negar-lhe futuro.