“A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Ao designar os objectos pela sua utilidade, ela impede-se de conhecê-los. Não se pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a ser superado. Não basta, por exemplo, corrigi-la em determinados pontos, mantendo, como uma espécie de moral provisória, um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido de problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo o conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é dado. Tudo é construído.”
Gaston Bachelard, A formação do espírito científico
Regina Sardoeira
Escolhi esta epígrafe para a crónica de hoje e vou aplicá-la à situação do mundo actual onde as opiniões e os “fazedores” de opinião pululam por toda a parte.
“A opinião pensa mal.” , escreve Bachelard. E, se tal acontece é na medida em que o sujeito pensante vê os factos nos limites, invariavelmente estreitos, do poder da sua observação. Portanto, logo que formula uma opinião só pode levar em conta o plano que a sua capacidade de observar lhe faculta. Mas, por essa mesma razão, dar uma opinião nem sequer é pensar, pois cada um vê o que quer ou deseja ver e, ao falar, de imediato, daquilo que supostamente viu não teve qualquer oportunidade de pensar. E logo o filósofo acrescenta: “[a opinião] não pensa: traduz necessidades em conhecimento”. Cada um é presa de um considerável conjunto de necessidades: precisa de aprovar ou condenar, precisa de confiar ou de ficar na defensiva, precisa de acalentar ou de agredir e por aí adiante. E assim, emite opiniões de acordo com o seu leque mais ou menos alargado de necessidades.
Logo que as divulga, e consoante o carácter específico dos receptores, vai contribuir para concordâncias e discordâncias múltiplas, incrementando o opinião alheia e formando, por esse meio, um conhecimento ilusório ou falso.
Observa-se, quotidianamente, quando assistimos com atenção aos noticiários, um enxame tonitruante de opinadores, vindos não se sabe bem de onde e logo escutados por milhares de pessoas que, sem darem conta, moldam às deles as suas próprias opiniões. E crêem, verdadeiramente, uns e outros terem o conhecimento verdadeiro acerca dos factos em análise.
Falemos, pois, do conflito Russia-Ucrânia que é, há cerca de um mês, o pano de fundo do teatro das múltiplas informações colhidas na comunicação social.
Prestemos somente atenção, neste momento, a um dos lados, observemos o conflito de acordo com a resistência do povo ucraniano e do seu líder.
Aparentemente, ele, esse até há pouco tempo desconhecido Zelensky, está a desempenhar um importante papel na defesa do país. Mas, se observarmos mais de perto, o que vemos, realmente? Um homem obstinado e temerário que obriga o seu povo a desertar do país ou a lutar contra o outro lado. E que lado é esse? O povo russo? Um outro líder também ele obstinado e temerário? Uma ideia mais ampla? Um inimigo muito mais perigoso, para além da Rússia e do seu líder?
Ademais, ele diz querer defender o país. E contudo a sua obstinação e persistência, que certos opinadores rotulam de heroísmo, está a destruir o país, a devastar cidades, a matar pessoas, a esvaziar casas que, entretanto, deixaram de existir.
A Ucrânia ainda é um território concreto? Os escombros perpetrados serão o país que é necessário defender? Quando os refugiados regressarem (se chegarem a fazê-lo) para onde voltarão, afinal?
É Zelensky o actor da destruição? Não é o outro, ali ao lado, também ele obstinado e temerário, esse Putin, hoje considerado ( outra opinião) um criminoso de guerra? Só ele?
Afinal toda e qualquer guerra é um crime. Logo, os que nela intervêm, prolongando-a na ânsia de vencer, são igualmente criminosos. E o que é vencer esta guerra? Ou, melhor ainda, será possível vencer esta guerra?
Penso em conflitos anteriores narrados na história do mundo. Vejo Napoleão, esse herói e, contudo, um assassino, a querer dominar o mundo na insanidade do poder e da glória, e vejo- o, por fim, derrotado e humilhado no seu exílio em Santa Helena. Vejo Hitler o führer da Alemanha a querer, nos limites da loucura, exterminar comunidades inteiras para reduzir tudo a um único ideal germânico. E vejo-o, no seu bunker, já derrotado, mas incapaz de o assumir, a disparar sobre si próprio. Lembro a história do romano Nero, talvez mascarada pela ficção, a suicidar-se, pela mão de outrem por não ter a necessária coragem de salvar a sua honra.
E estes dois? Qual sucumbirá e às mãos de quem?
Putin não deveria ter invadido a Ucrânia, em prol das suas razões já antigas? Zelensky não deveria ter resistido fazendo jus ao cargo recém-adquirido e à integridade do seu país?
E agora? Pode o primeiro aceder aos pedidos de diálogo e cessar o confronto, abdicando das reivindicações que a ele conduziram? Pode o segundo ceder ao primeiro, render-se e aceitar as suas condições?
“Em primeiro lugar é preciso saber formular problemas” diz o filósofo, porque “todo o conhecimento é a resposta a uma questão” “Se não há pergunta não pode haver conhecimento [científico]”
Portanto, antes das opiniões, que devem ser destruídas porque com elas somos inibidos de pensar, é necessário aprender a questionar e a procurar resposta a essas questões.
Esta guerra é somente um conflito particular entre a Rússia e a Ucrânia? É um confronto de pessoas, os líderes respectivos desses países? Ou terá participantes e personagens ainda ocultos, cada um imbuído do seu respectivo interesse? Não estaremos já perante um conflito generalizado levado a cabo por chefes de governo (que não aqueles dois em concreto) que se encontram, discutem e talvez conspirem?
“Nada é evidente. Nada é dado. Tudo é construído.”
Por mais notícias que vejamos e opiniões que escutemos, nada é evidente: é necessário pôr tudo isso de lado e escavar mais fundo. Por mais que nos pareça fácil e linear louvar e atacar um dos lados, nada é, de facto, dado. Porque tudo é construído. E, se quisermos mesmo conhecer e não ser enganados pelo alarde das opiniões,, necessitamos de formar o nosso próprio conhecimento, para lá de tudo e até de nós mesmos.