Soni Esteves
Tenho no meu pequeno jardim um vaso que há anos me dá cravos, e não houve ainda abril algum em que ele não florisse. Não são cravos grandes, daqueles que os militares, há 48 anos, espetaram nos canos das espingardas ou que atiraram ao povo em manifestação feliz. São mais pequenos, de pé curto, mas têm o mesmo vermelho intenso, e gosto de pensar que são herdeiros da esperança que abril de 1974 nos legou.
Sei que nem todos pensam assim, e são cada vez mais os que soltam suspiros nostálgicos, ainda que muitos nem saibam muito bem a que passado querem regressar, que Salazar é o que querem fazer renascer, uma vez que nem sequer eram nascidos nessa altura. Esses posso até perceber, mas de outros que, como eu, ainda conheceram o tempo da ditadura, só posso pensar que deveriam ter vivido numa qualquer espécie de redoma, esquecidos do mundo. Pode ter acontecido, mas que diabo, podiam ler, ver cinema, afinal está tudo nos livros, nos filmes, e ainda na memória de quem viveu aquele tempo e não fechou os olhos à verdade. É certo que muitos erros têm sido cometidos, são cometidos todos os dias, há cada vez mais pobres, cada vez mais ricos, o fosso entre uns e outros é cada vez maior, mas antes era maior ainda e os pobres eram ainda mais pobres. Eu vi.
Vivemos há 48 anos em liberdade, tantos quantos os anos que vivemos em ditadura. Isto quer dizer que vivi a minha infância e parte da minha adolescência em ditadura, o que me dá o direito de dizer que vi. Eu vi crianças mal vestidas, com frio, com fome, a irem descalças para a escola, com os livros metidos num saco de serapilheira, a chorarem se partiam a lousa porque tinham de escrever nos cacos, até terem direito a outra; eu vi o mundo a dividir-se entre os que iam estudar e os que, ainda crianças, eram atirados ao mundo do trabalho; eu vi uma sardinha ser repartida por três; o pão que se cozia no forno a ser racionado para chegar para uma semana. E esses não eram os pobres, eram a maioria, o povo. Os pobres não tinham sardinha nenhuma, não tinham forno, nem farinha, contavam apenas com o pão da caridade de outros menos pobres do que eles, porque aos ricos não conseguiam sequer chegar. Eu vi a subserviência, o chapéu na mão, os olhos baixos, a vergonha da pobreza, da roupa rota, do pé descalço. Eu vi, e todos os da minha geração viram… muitos terão sentido na pele, outros terão apenas suspeitado, e outros, ainda, terão fechado os olhos, negado as evidências, porque temos tendência para ver as coisas boas da vida, e a pobreza é uma coisa triste, uma coisa feia, e quem tem a sorte de ter cortinas, pode sempre escolher fechá-las. De qualquer modo, não posso deixar de me espantar quando me dizem que o mundo desigual é coisa recente, que antigamente era tudo gente boa, a enriquecer honestamente, como se fossemos um povo que abril corrompeu, ao invés de ter salvado. Como se desconhecessem que havia crianças a trabalhar a troco de comida; que a esmagadora maioria dos trabalhadores não tinha direito a férias; que as taxas de analfabetismo nos afastavam do mundo livre; que as mulheres não podiam aspirar ao salário dos homens, aos direitos e à “liberdade” deles; como se pudessem ter esquecido aqueles que foram presos e torturados por pensarem diferente e aqueles que morreram para defender a ideia ilusória de um império.
Não, Portugal não era dos portugueses, não era um país de brandos costumes, era uma terra em que os direitos se mediam pelo peso do nome e pelo tamanho da carteira. Perguntar-me-ão, se não se passa agora o mesmo, se não existe uma justiça para ricos e outra para pobres, uma saúde desigual para uns e outros. Sim, é verdade, mas não é a mesma coisa. Eu sei, eu vi. Conheci pessoas que morriam sem terem saído do sítio onde nasceram, sem terem experimentado outra luz senão a do sol e a da candeia de azeite, sem terem visto o mar, sem terem conhecido um médico, um hospital, porque o serviço nacional de saúde foi uma das invenções de abril…
Claro que aspiro a um mundo melhor e, portanto, não posso deixar de pensar que este país é também o que fizemos dele, o que fizermos dele, porque somos livres de escolher, e recuso pensar que a solução está, uma vez mais, em entregar as nossas vidas a alguém que pense por nós, que escolha por nós, que decida por nós. O pensamento é a nossa arma e a nossa liberdade. Eu não deixarei que pensem ou decidam por mim e continuarei a cuidar do meu vaso para que ele continue a dar-me as flores de abril.