Regina Sardoeira
“Chama-me pelo teu nome”. Um livro, escrito por André Aciman, um filme realizado por Luca Guadagnino, com argumento de James Ivory.
Foi o último livro que li e quero escrever sobre esta extraordinária obra literária (com uma única reserva: a editora, Clube do Autor e o tradutor Hugo Gonçalves, usaram o designado “acordo ortográfico” o que me incomodou algumas vezes.) Porém, isso não foi suficiente para diminuir o êxtase da leitura. Uso a palavra “êxtase” com total propriedade; e foi um êxtase virado para dentro, à medida que os pensamentos do narrador – o jovem Elio, de 17 anos – me acometiam. E eram desejos, medos, deleites, sonhos, dúvidas, euforia e desespero e muito mais: todo o acervo de múltiplas vibrações íntimas, ali expressas de um modo inigualável.
É verdade que, antes do livro, chegou até mim o filme. Não pude, pois, ter a experiência estreme da obra literária já que as imagens do filme foram o cenário contínuo da leitura; mas de modo nenhum lamento a sobreposição. E então, não serei capaz de desligar o filme do livro, pese embora o facto de cinema e literatura serem duas linguagens estéticas diferentes, exigindo, por isso, distintas abordagens.
“Chama-me pelo teu nome, que eu chamo-te pelo meu.” Esta frase, potencialmente enigmática e contudo profundamente clara e significativa, quando incluída no contexto que a ditou, é o leit motiv da obra. E a obra poderíamos muito bem categorizá-la como sendo uma história de amor. Porém, ela é muito mais do que a descrição de um breve episódio de atracção, de ardor, de paixão entre dois jovens : Elio, de 17 anos e Oliver de 24. É um denso tratado sobre o crescimento humano, os avanços e os recuos, as tensões psicológicas, o medo e o desejo, a euforia e o desânimo vividos numa zona entre o rural e o piscatório, na Itália mediterrânica, em pleno Verão.
São dois rapazes, sim. Mas esta história profundíssima de amor e paixão só passa pela corpo na medida em que, por mais que o desejássemos, se ousássemos desejá-lo, não há nenhum outro modo de exprimir o amor a não ser pela via do corpo e logo dos sentidos, da pele, das secreções, dos gestos, da necessidade de união, dos eflúvios secretos e dos mais imediatamente tangiveis. Elio, narrador do livro de Aciman, oferece-nos toda a sua intimidade e o súbito encantamento pelo jovem Oliver, o convidado americano dos seus pais numa bela quinta italiana, e dá-nos a saber como, em golfadas pungentes ou com recuos desesperados, o amor e o desejo lhe incendeiam as horas do dia.
No filme, assistimos ao dia a dia dos dois jovens, às longas manhãs na relva, junto da piscina, com sumo de alperce e muitos trabalhos (Oliver estava ali para solidificar a sua carreira universitária e aperfeiçoar um livro sobre Heráclito, debaixo da orientação do dono da casa e mentor habitual de jovens como ele, Elio é um adolescente reservado, grande leitor de grandes obras, poliglota e músico – uma das suas tarefas é transcrever os clássicos para a pauta, enquanto os escuta no walkman – a história decorre nos anos 80, do século XX – e um executante talentoso, ao piano) , seguimo- los nos seus passeios de bicicleta, nas conversas às vezes obscuras, outras sarcásticas, mas onde perpassa uma emoção que (não sabemos!) poderá ou não eclodir.
O tempo passa e nenhum deles se atreve a fazer o primeiro gesto revelador. Percebemos pequenos sinais da parte de Oliver, prudentes e respeitosos, mas ligeiramente notórios e sabemos que Elio quer o desenlace – mas não acredita que tal aconteça.
Quando tal se dá, por fim, uma noite, no quarto de Oliver, cedido por Elio para o hóspede, damos conta da força e da entrega de ambos no acto supremo do amor. Pouco importa que sejam dois homens (um, ainda menor, o outro, mais velho e hipoteticamente mais experiente): o amor desencarna-se e encarna-se dos mais diversos modos e através dos veículos mais díspares. Há horas ímpares de entrega, daí para a frente, entre dois seres afins, que se entrelaçam, se respiram e se reconhecem e depois transitam de um para outro. É então que Oliver diz a Elio : Chama-me pelo teu nome que eu chamo-te pelo meu.
Transmutaram-se, pois. Um deu à luz o outro e cada um se tornou o criador e a criatura numa obra genésica prodigiosa.
Quando têm que separar-se para cada um seguir o seu rumo específico, o drama interior e o sofrimento é ainda uma espécie de bálsamo: porque a memória persiste, inteira e permutável.
Há, no livro que gerou o filme, um capítulo final intitulado “Os sitios-fantasma”; o filme não vai tão longe, deixa-nos perante um Elio desamparado, no Inverno, no mesmo local, com a neve a cair no espaço dos seus arroubos estivais, a receber pelo telefone a notícia do casamento iminente do seu amado Oliver. Mas o livro segue o percurso dos dois ao longo de vinte anos, ficamos a saber que Oliver regressou a Itália com a sua família, que Elio o procurou um dia na Universidade de Colúmbia …mas o episódio único vivido naquele Verão intenso dos anos 80, preservado e presente nos dois ao longo dos anos nunca mais teve a menor hipótese de renovar-se. Nem precisava: porque aquelas poucas semanas de intimidade valeram uma vida inteira.
Cabe destacar ainda a atitude do pai de Elio quando, observando a tristeza do filho após a partida do amigo, se senta junto dele, inicia, com suavidade e persistência a conversa acerca da amizade entre o seu filho e o seu convidado, e acaba, dizendo-lhe:
“Ouve. Vocês tinha uma bela amizade. Talvez mais do que uma amizade. E invejo-te por isso. No meu lugar, a maioria dos pais gostaria que tudo isso desaparecesse, ou que os seus filhos esquecessem o que se passou. Mas não sou esse tipo de pai. Se houver dor, cuida dela, e se houver chama, não a desprezes, não sejas brutal com ela. A abstinência do que gostamos pode ser algo terrível quando nos deixa acordados, durante a noite, e ver como os outros se esquecem de nós mais depressa do que gostaríamos de ser esquecidos não é melhor. Arrancamos tanto de nós próprios só para nós curarmos das coisas mais depressa do que deveríamos, que entramos em falência por volta dos trinta anos e temos menos para oferecer de cada vez que começamos com alguém novo. Mas tentarmos não sentir nada, porque temos medo de sentir alguma coisa. Que desperdício! ( …) Deixa-me dizer-te mais uma coisa. Vai ajudar a esclarecer tudo. É verdade que estive perto, mas nunca tive o que tu tiveste. Havia sempre algo a travar-se ou que se metia no caminho. Como irás viver a tua vida, só a ti diz respeito. Mas lembra-te de que os nossos corações e corpos só nos são dados uma vez. A maioria das pessoas não consegue evitar viver como se tivesse duas vidas, uma é a maquete, a outra, a versão finalizada, e depois há uma série de versões pelo meio. Mas a verdade é que temos apenas uma vida, e, antes de que te dês conta, o teu coração está gasto, e quanto ao teu corpo, chega uma altura em que ninguém olha para ele, e cada vez menos gente se quer aproximar de ti. No presente há tristeza. Não invejo a dor. Mas invejo a tua dor. (…) Pode ser que nunca mais falemos disto. Mas espero que não me condenes por o ter feito. Teria sido um péssimo pai se, um dia, tu quisesses falar comigo e a porta estivesse fechada.”
Não procurei o filme como não procurei o livro: fui encontrada por ambos e sei que, mais tarde ou mais cedo, alguma coisa nascerá, para mim, deste não anunciado encontro.
Percebo que estas duas obras, homónimas e, talvez complementares (para mim, foram-no), não são para todos. Porém, desenganem-se: as designadas obras para todos não o são de facto, porque tal categoria não existe. E para poder chegar ao fundo do manancial riquíssimo que transborda deste livro e da profunda beleza, feita imagem, que nos preenche no filme, é necessário ter a sabedoria e a delicadeza do pai do adolescente Elio. E foi por essa mesma razão que transcrevi integralmente as suas palavras.