Cultura, Literatura e Filosofia

MAIO NUM RAIO DE LUZ

“Maio, maduro Maio, quem te pintou? / Quem te quebrou o encanto, nunca te amou […].”

–  In: Zeca Afonso, 1971*

Anabela Borges

Vi nascer o Maio.

Montado num raio de luz, trazia o amarelo das giestas, espalhando o odor amargo pela vastidão dos montes, e o dourado incandescente das trovoadas, criando massas de ar abafado suspensas na crista do horizonte. Um vento fustigante, pó e penumbra, varrendo tudo, varrendo o ar, varrendo as nuvens em velocidade furiosa, varrendo a terra, tudo feito pó.

Eu vi nascer assim o Maio, mas não vi crescer as searas – o vento as levou.

Veio a super-lua, com eclipse total, mulher menstruada em flor permanente – blossom – florescendo em sangue, em flor-de-sangue sempre. O vermelho cobriu tudo, encheu o ar, as copas das árvores, as pontas das ervas, as beiradas das casas, os dedos das crianças. E as nuvens começaram a pingar esse vermelho pegajoso também.

Vi nascer assim o Maio, mas não vi o pintalgado das papoilas – o sangue as levou.

O tempo é um dragão de patas largas, garras acirradas, asas de plumas ásperas e acinzentadas, com boca de fogo e o corpo coberto de erupções esverdeadas. O tempo é um bicho imenso de aspecto reptiliano, monstro imaginário de cauda longa, mandíbulas aguçadas e língua bífida. Traidor. Bicho escamoso de sangue-frio! À espera do momento perfeito, dissimulado, ataca à traição. O seu único desejo é matar. Vejo a sua figura gravada no punho de uma faca, na coronha de uma arma, na ogiva de um obus, morteiro de sombras sem fim. O tempo cobre tudo. Veio e cobriu tudo.

Vi nascer assim o Maio, mas não vi as caras dos girassóis – o tempo as levou.

E assim vai o Maio, montado num raio de luz, varrido de vento, florescente de sangue, dragão doido, enfurecido.

As pessoas querem sair para as ruas, apesar do vento que as empurra em direcções erráticas. Querem gritar, apesar do vermelho viscoso que escorre e lhes tapa as bocas. Não querem parar, apesar do tempo que cobre tudo, cobre tudo, cobre tudo. As pessoas saem, juntam-se, punhos ao ar, gadanhas ao ar, armas ao ar, flores ao ar, palavras ao ar. E essa união faz uma multidão. Há uma turba de gente que já nasce com uma vontade firme de liberdade, uma esperança de gente que jamais terá fim. Venham ver, Maio nasceu / Que a voz não te esmoreça / A turba rompeu. *

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