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Cultura, Literatura e Filosofia

O PODER DO OLHAR FILOSÓFICO

” (…) Ora, viver sem filosofar é ter os olhos fechados e nunca se esforçar por abri-los; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa vista descobre não é nada comparado com a satisfação que dá o conhecimento das que se encontram pela filosofia; e enfim, este estudo é mais necessário para regular os nossos costumes e nos conduzir nesta vida do que os nossos olhos para guiarem os nossos passos.”

René Descartes, Princípios da Filosofia

Regina Sardoeira

Segundo o ponto de vista do autor, o filosofar é um bem mais precioso do que a vista pois é muito mais intenso o prazer que se obtém com o conhecimento dado pela filosofia do que aquele que resulta da visão de tudo o que conseguimos alcançar através do uso dos olhos, já que o filosofar é um excelente auxiliar para nos guiar na vida.
Mas, se fossemos privados, bruscamente, da visão, sem dúvida consideraríamos esse o nosso bem mais elevado pois, habituados a conduzir os nossos passos através dos sentidos físicos, seríamos subitamente precipitados num enorme desconforto. Nesses momentos iniciais, certamente não daríamos apreço a todos os conhecimentos obtidos pelo filosofar, crentes de que nos havia sido retirado o maior dos nossos bens.
No entanto, com o tempo, aprenderíamos a escutar a voz interior e a ver de dentro para fora, ou seja, a usar todo o esclarecimento obtido através do estudo para suprir a deficiência causada pela falta de visão. E poderíamos descobrir a importância de todos os outros sentidos, até então menos desenvolvidos, ficando aptos, doravante, a utilizá-los como substitutos da visão que nos faltara.
Por outro lado, o exemplo utilizado por Descartes é uma metáfora, ou seja, quando ele fala em «olhos» está a querer significar capacidade de orientação, discernimento na busca do caminho correcto, perspicácia na análise dos nossos actos, clareza nas tomadas de decisão. Portanto, a visão a que o filósofo alude é muito mais do que o uso dos olhos físicos com os quais vemos o mundo à nossa volta, sendo, por excelência, a consciência lúcida da nossa caminhada de seres humanos.
De acordo com esta perspectiva, é possível, então, admitir que, mesmo com os olhos fechados, podemos obter um maior entendimento do mundo que nos rodeia já que, a maior parte das vezes, limitamo-nos a lançar um olhar distraído sobre as coisas, esquecendo-nos de as observar, de reparar nelas. Ora a filosofia e o exercício do filosofar persistente e contínuo possibilitam, a todo aquele que os pratica, uma visão muito mais apurada, quer no sentido físico do termo – ver com os olhos – quer no metafórico – ver com o nosso sentido interior.
Podemos então discordar e concordar simultaneamente com Descartes: discordar, se acaso levarmos ao pé da letra a superioridade que ele atribui à filosofia relativamente à visão, pois ninguém na posse das suas faculdades mentais aceitaria privar-se da visão para aceder ao olhar filosófico; mas concordar em pleno, se entendermos que o olhar a que o filósofo se refere é o olhar integral, aquele que desperta para as coisas dentro e fora de nós e pode tudo observar claramente mesmo na mais completa escuridão.
Em conclusão: filosofar é ver, ver com uma espécie de visão esclarecida, ver para orientarmos os passos nas decisões existenciais de todos os dias, ver para nos conseguirmos adaptar ao mundo e dele darmos testemunho. O autor compara com justeza o uso dos olhos e o exercício da visão como metáfora desse olhar o mundo, simultaneamente observando e analisando cada partícula do real e podendo, desse modo, obter da vida muito maior prazer e benefício do que se nunca nos dispuséssemos a filosofar no verdadeiro sentido que a palavra comporta.

” Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

Livro dos Conselhos, in O Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago

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