Regina Sardoeira
Falemos de arte, exploremos, tanto quanto possível, este tema, que nem sei bem se é um tema, antes uma actividade humana que transborda de uma fonte metafísica, de um fluxo divino, de uma região inomeável, de profundidades ignotas que o próprio artista desconhece e sempre desconhecerá. Não se cria um artista, não é possível que um artista aprenda a sê-lo numa escola, ou que a arte que dele brota seja um trabalho feito em horários estipulados como outros labores humanos. Um artista é-o simplesmente. O momento de criar surge num ímpeto impossível de reprimir ou adiar, e a obra que nascerá desse impulso só termina quando o autor disser, de si, para si mesmo: “Está pronta!”
Claro que muitos discordarão e eu entendo. Vivemos numa era tecnológica, digital e outros epítetos, uma época, a certos níveis, desenfreada e incapaz de reconhecer limites, ou então ávida de rotular e castrar. Mas a arte é a arte e é o que sempre foi. Há dias vi um filme intitulado “Eu, Leonardo”, onde foram utilizadas palavras citações e textos dele próprio e percebi que esse génio, que conhecemos sob o nome de Leonardo da Vinci, esse homem do Renascimento era de uma extrema inocência e simplicidade mas, em simultâneo, uma mente de enorme acutilância e labor, um observador encantado da natureza e dos homens que estudou até ao íntimo, não só na forma exterior, mas também na profundidade que os fez chegar a ser o que eram, e criou obras magistrais e tratados de ciência pois precisava de entender o funcionamento das coisas. Ele pôde ser artista porque teve mecenas, homens comuns, ainda que fossem papas ou príncipes, mas ciosos do esplendor que ele sabia criar, homens que não o compreendiam mas percebiam que as suas obras os elevariam nas glórias do mundo; e então deram-lhe a possibilidade de ser ele próprio: um génio que se foi cumprindo.
No nosso tempo não há mecenas e os artistas têm que vender a sua arte e ter outro trabalho se querem sobreviver. Os artistas, que o tempo de hoje consagra, dependem dos comerciantes, de tarifas que os exploram e dos críticos de arte (não sei bem o que isso é) que, escrevendo ou falando sobre este ou aquele, elogiando-o, publicitando-o nos meios disponíveis, e são tantos, fazem com que passem para o primeiro plano. E, ainda que sejam meros artesãos ou técnicos ou coisa nenhuma ficam, desde logo, altamente cotados e ganham público e fazem exposições e seminários e dão entrevistas e ninguém ousa, daí para a frente, dizer que a obra deles é vazia ou uma fraude-
Estou a falar de artistas das designadas Belas Artes, mas incluo nesta análise os poetas, os escritores, os músicos e outros – que a força que irradia de quem escreve um poema, um romance, ou compõe uma sinfonia é a mesma que anima o pintor, o escultor, o arquitecto. A expressão é outra, mas o sortilégio é o mesmo. Mais ainda: eu descobri, há algum tempo, que um artista é-o em toda e qualquer arte: só que aquele que toca as teclas de um piano e compõe músicas sublimes, nem sempre explora as outras expressões do génio que nele habita. Se ousasse fazê-lo perceberia logo que a poesia, a pintura, a dança lhe eram igualmente acessíveis.
E, neste momento, chega o fulcro desta minha crónica que levará muitos ( se alguém a ler) a fazer um rictus trocista ou sarcástico ou até a dizer palavras malévolas: porque o homem comum é assim e recusa que, ao lado dele, exista alguém bafejado pelo milagre da criação artística. É que ( sabem?) eu tenho estado a falar de mim porque reconheço, bem no fundo, os múltiplos dons de que é feito um artista. Muitas pessoas, e não só aqui neste meio muito apertado que é Amarante, sabem que eu escrevo, que sou autora de vários livros publicados e de outros inéditos. Mas, bruscamente, faço uma exposição de pintura e todos pasmam! “O quê? Ela também pinta?” E, como nenhum crítico me elogiou ou tentou decifrar o que estará por detrás daquelas imagens, ou até denegrir a minha criação, ninguém ousa dizer mais do que “gostei muito, parabéns”.
Mas é verdade: eu, que dou pelo nome de Regina Sardoeira, escrevo, pinto, toco piano e já compus melodias, faço teatro, canto…e sei muito bem que, se o instinto me mandasse, talvez esculpisse ou fizesse arquitectura! Evidentemente que a arte que mais me é familiar é a escrita e, se me pedissem para tocar piano ou para cantar as minhas melodias eu jamais o faria porque há anos que não pratico. Pratico, entenderam? Não basta o dom puro e simples, é necessário aplicação e estudo, é necessário dominar as respectivas técnicas: e ser escritora, pintora, pianista, cantora, actriz é decerto demasiado para uma pessoa só ! Porém, quando descobri, há 25 anos, que também podia pintar, que as composições me saíam para as telas com o que me vivia na imaginação foi a grande epifania (devo-a a Júlio Cunha, o meu mestre.).
Dir-me-ão que, naqueles meus oito quadros expostos, há um Salvador Dalí ou uma Mona Lisa e um girassol de van Gogh ou mesmo uma manta de Klimt. Porém. não é, de facto, a cópia do Dalí que expus, a Mona Lisa, efectivamente, não o é, e a manta do Klimt é tão só uma sugestão! e todos os artistas aprenderam a pintar, ou a escrever, ou a compor com outros mestres ainda vivos ou mesmo já mortos ( estou a lembrar-me de O Semeador de Van Gogh, réplica do semeador de Millet, mas há mais) e não se trata de copiar ou plagiar mas de partir daí para outras digressões artísticas). Logo. aqueles obras, algumas delas com mais de vinte anos, que quis partilhar, são genuinamente minhas e são, não duvidem, obras de arte.
Infelizmente, aqui, em Amarante, tomaram como símbolos artísticos Amadeo de Souza-Cardoso, Teixeira de Pascoaes, Agustina Bessa-Luís e pouco mais! Amadeo é um pintor de grande mérito, mas a obra dele integra muitas influências: há futurismo, abstraccionismo, cubismo, as curvas de Amedeo Modigliani, arte nova… Está tudo ali, nessas obras com as quais nos extasiamos e ninguém pode dizer que ele copiou fosse o que fosse, antes seguiu influências e talvez nem tenha chegado a encontrar o seu género artístico próprio ( se acaso necessitasse de um) porque morreu demasiado jovem!
Teixeira de Pascoaes foi, sem dúvida um poeta, ensaísta, biógrafo e filósofo excepcional…mas, de entre todos os que o elogiam e citam, quem o leu e interpretou verdadeiramente? Muito poucos e arrisco-me a dizer “talvez ninguém”! Citar é fácil; qualquer um pode arvorar erudição porque os textos estão aí, exactamente, no Google.
Agustina Bessa-Luís pode ser uma grande escritora, não duvido. Mas ao ler os livros dela embaraço – me porque as personagens são demasiadas e perco-me, e eu gosto que a escrita me leve e não de precisar de tomar apontamentos para não me esquecer de quem é quem: e assim a escrita é, desse modo, maçadora – tudo o que li dela ( tenho neste momento um livro em mão, “As Pessoas Felizes”) e o mesmo tédio narrativo, as personagens, todas muito semelhantes às de outras obras dela e também amalgamadas em camadas de fundos existenciais complexos, me oprimem! )
Falo destes três porque são os grandes símbolos de Amarante e depois penso: e o meu tio Ilídio Sardoeira com o seu espólio doado e depois perdido na Biblioteca Albano Sardoeira, e as suas obras inéditas e outros manuscritos? Porque se fez um silêncio em torno de um criador multifacetado daquele calibre, um cientista, um investigador, um poeta? Quem se lembrou de ir ao fundo da gaveta e começar a trabalhar o acervo manuscrito da sua obra?
Um dia fui à Biblioteca e disse que queria consultar o espólio de Ilídio Sardoeira. Responderam-me: “Não pode tem que solicitar, por escrito, autorização ao Presidente da Câmara!” Senti um profundo desconcerto: eu, sobrinha e afilhada do poeta, eu, que tive nas mãos aqueles livros e as obras de arte e convivi com ele e com tudo o que lhe pertencia, eu, que sou, juntamente com os meus dois irmãos, a única família directa que ele deixou, tenho que solicitar, por escrito, autorização e aguardar a resposta positiva ou negativa? Não solicitei, não fui capaz, senti que isso seria um vexame. Os livros poderiam estar aqui, em minha casa, o meu tio/padrinho não teve filhos, e a mulher dele, que lhe sobreviveu, decidiu doar tudo à Câmara…para quê?
Nunca ninguém (que eu saiba) se lembrou de dar relevância àquela doação e muito menos pensaram em mim, a sobrinha e afilhada de sangue e mulher de letras, que bem seria capaz de tomar conta de tudo aquilo e dar-lhe visibilidade.
Pois bem: continuem a pôr nos píncaros os três que já citei, que entretanto morreram e não precisam de homenagens ou de conferências ou seminários ou seja do que for, chamem as celebridades de fora e exponham-nas no museu ou façam sucessivos lançamentos de livros, de autores que há muito têm o seu lugar firmado no mundo português (e não só).
E continuem a ignorar Ilídio Sardoeira e, já agora, também Regina Sardoeira que não publica livros porque não aceita pagar às editoras 1700 euros, por exemplo, quando, depois dos livros cá fora, o autor se desdobra em lançamentos para receber 10% do lucro da editora. Não, não caio nessa esparrela comercial, nesse roubo do meu talento que é a matéria prima da embalagem de papel e tinta e que, feitas as vendas, dá 90% à editora e distribuidora e 10% ao autor sem o qual não haveria absolutamente nada.
Não estou, de modo nenhum, a fazer o meu elogio ( e, se estivesse, tinha todo o direito pois conheço-me bem), faço, simplesmente, uma análise e os exemplos que uso não surgiram para desmerecer a obra de ninguém, já que a conheço e respeito e vejo o mérito que tem. Se lerem esta crónica, leiam o que eu digo e não o que a vossa mente pensa que eu quero dizer. É difícil, bem sei, a maior parte das cabeças está formatada e já não consegue pensar para além do estereótipo.
*. As duas últimas são réplicas de Miguel Ângelo e Leonardo da VINCI, em tempos de pandemia…