Soni Esteves
Hoje acordei com os pássaros. Acontece-me muitas vezes. Depois, confirmo o fiozinho de luz a espreitar pelas aberturas da persiana e fico a pensar se foram os pássaros que despertaram a madrugada, ou se terá sido ela a responsável por aquele extraordinário concerto.
O sítio onde moro tem as casas a roubar a terra de uma antiga quinta que não conheci. Mas deve ter sido bonita e verde, pela proximidade do ribeiro que lhe marcava fronteira. Talvez os pássaros tenham estranhado que, de repente, as árvores tivessem rareado, que as sementes outrora disponíveis nos campos tivessem desaparecido, e que as pessoas dessem assim lugar aos bichos que por aqui deviam ter morada e préstimo. De qualquer modo, as poucas árvores que persistem e as que, entretanto, foram preenchendo os jardins do lugar são casa de melros, piscos, pardais, rolas, e mais, de que apenas conheço o chilreio. Esse trinado, mais triste e quase impercetível no inverno, torna-se claro e alegre na primavera, mas é no verão que se intensifica e ganha proporções mais assombrosas.
Recordo os primeiros verões que aqui passei, o espanto perante aquela música tresloucada que enchia a rua e entrava no meu sono, sem licença nem aviso prévio. Depois, aquele canto a marcar o início do dia tornava-se mais espaçado, mais indistinto, até restar apenas um pio aqui e ali já misturado com os ruídos da manhã, mas raramente eu voltava a adormecer.
Por essa altura, um vizinho que migrara, como eu, da cidade para aquela periferia onde morávamos, decidiu regressar à origem. “Não consigo dormir com a passarada”, dizia. E foi. Não voltei a vê-lo, mas posso imaginá-lo a adormecer embalado no ruído surdo dos motores e do movimento da cidade, e sinto uma espécie de pena. Entretanto, vivem crianças na casa que era dele, e talvez elas se entretenham a saber que pássaros cantam quando a madrugada se incendeia para lá do espaço antigo de quinta. Ou talvez não, porque antes de crescermos não questionamos o lugar onde nascemos, como se tudo estivesse lá antes de todos os tempos e pudesse ser imutável.
Agora, os pássaros já não me tiram o sono. Acordo, confirmo a madrugada e o sol que ela me traz, e volto aos braços de Morfeu, debaixo daquele trinado que se vai desfazendo na quentura que se apodera da rua, quando o azul do céu se intensifica e é riscado pelo voo das aves. E ao final da tarde, enquanto o sol está prestes a terminar o seu eterno caminho— como gostamos de pensar —, antes de se espraiar em arroubos de luz e cor por detrás do que era a antiga quinta, o meu gato, por entre a letargia que acompanha os seus dias, fica de orelhas espetadas a ouvir o regresso dos chilreios. Atento, espreita as árvores e solta uns miados. Se algum pássaro se aventura por perto, ele fica estático, depois ensaia um abanar do corpo, prepara o salto, mas já o pássaro voa para longe. Então segue-o com o olhar, depois volta à modorra de sempre e eu fico sossegada pela saúde do pássaro.
Mas ontem, o atrevido, depois de uma escapada para o jardim da vizinha, apareceu em casa a miar desalmadamente. Julguei que reclamasse comida — é o que faz sempre, mesmo que tenha o prato cheio —, não era o caso. Um pardalito pequenino, já com penas, talvez pronto a voar, estava na cadeira para onde ele saltara. Peguei-o, ainda me parecia quente, mas o seu coraçãozinho não batia e a cabeça pendia, inerte.
Lembrei de uma gata que a minha mãe tinha. Volta e meia, aparecia-lhe em casa com um musaranho, um pássaro, uma lagartixa… e depositava-os aos seus pés, como se fossem oferendas. Não havia nada a fazer, era uma gata caçadora, dizia a minha mãe. Mas custa-me pensar que o meu gato, o meu Twix, castanho e doce como o chocolate, consiga despir toda a sua doçura e se transforme num impiedoso predador. Dizem-me que é a Natureza a funcionar… e talvez seja, mas o pássaro pode muito bem ter caído do ninho, ou não?